Pescar no cais do Porto das Pipas foi, desde sempre, um acto cultural que faz bem ao espírito depois de um dia de trabalho árduo, ou na reforma enquanto forma de entreter o tempo e ensinar aos netos os segredos do encantamento do peixe. E é assim há muitos anos, mesmo quando o porto efervescia de movimento de contentores, de descarga de combustíveis, de granéis, de mercadorias inter-ilhas, ou de passageiros. Era um chega para lá, encosta daqui e os caniços, com mais ou menos espaço, continuavam mergulhados no cais, à espera do chicharrinho, da sardinha, às vezes de uma cavala meio distraída.
"Lei das Pescas é para agradar ao Sindicato dos pescadores" argumenta João Pedro Barreiros, docente do Departamento de Ciências Agrárias da Universidade dos Açores.
O Professor João Pedro Barreiros insurge-se contra a proposta de decreto regional que impõe licenças e limites para a pesca lúdica no arquipélago.
Diário Insular (DI) – A proposta de decreto legislativo regional vem impor a obrigação de licenças para os pescadores lúdicos. Estas medidas, para si, fazem sentido?
João Pedro Barreiros (JPB) – Há nesta proposta, de facto, várias questões que me parecem irregulares e inoportunas, havendo coisas mais urgentes para se estudar a sério. É evidente que a grande maioria dos pescadores lúdicos (caça submarina, pesca de barco e pesca de calhau) vai para o mar poucas vezes por ano. E faz isso por distracção e prazer. Aliás, muitas vezes, só o simples facto de estar sentado à beira da água, mesmo sem apanhar nada, é motivo de satisfação. Ou seja, tendo em conta este cenário e as quantidades capturadas, não podemos cair no erro de impor para tudo e mais alguma coisa chatices às pessoas, que acabam por acabar com os divertimentos.
DI – A tutela justifica a proposta, por exemplo, com a existência de venda ilegal de pescado.
JPB – Há prevaricadores em todas as actividades, tal como na pesca lúdica. Pode haver quem venda o que apanhou ilegalmente. Admito essa situação. Mas se isso acontece, existem organismos para fiscalizar esses episódios. Por exemplo, a Inspecção Económica tem a função de ir aos restaurantes e pedir os papéis que justificam a origem do pescado que confeccionam. Agora, isso não justifica que se tome a excepção pelo todo, partindo do princípio que todos são desonestos, que todos vendem peixe ilegalmente, que todos apanham quantidades astronómicas, etc. E isto quando nem se sabe quais as quantidades daí provenientes…
DI – Não existe qualquer estudo que demonstre o real impacto da pesca lúdica nos stocks de peixe existentes no arquipélago?
JPB – Não. Mas é evidente que o impacto causado pela pesca lúdica – incluindo a caça submarina – é perfeitamente ridículo, correspondendo a uma percentagem ínfima, quase desprezível, comparativamente ao impacto da pesca profissional. Por exemplo, o caso da caça submarina na Terceira: existem entre 25 a 30 caçadores submarinos na ilha, com nível competitivo e capazes de a realizar como ela exige (mergulho em apneia, armas de carregamento manual, etc); ora, todos eles juntos não apanham num ano aquilo que um barco de pesca profissional apanha num dia. Aliás, nem apanham um décimo dessa quantidade. E nas restantes vertentes da pesca lúdica, a situação é idêntica. É claro que há sempre o dia de sorte, há sempre o dia da pesca e o dia do pescador, como se diz. Mas é isso mesmo que motiva o pescador lúdico: “será que hoje vou fazer a pescaria da minha vida”. Não podemos acabar com essa alegria, com essa expectativa, só porque supomos que essas capturas põem em causa os stocks existentes.
DI – A fiscalização do cumprimento da legislação pode estar inquinada?
JPB – Claro. Imagine quantos pescadores de calhau estão, num determinado momento, nas costas das ilhas. A Polícia Marítima tem capacidade humana, financeira e material para percorrer toda a costa, andando com balanças a pesar que quantidades cada um capturou? Como se vai controlar e fiscalizar a pesca lúdica com base neste regulamento?...
DI – Na sua opinião, os limites de captura impostos têm fundamento?
JPB – Essas limitações generalizadas em peso e em número não fazem qualquer sentido. Não podemos atribuir um número genérico. Poderá fazer algum sentido para as espécies que já estão estudadas, nomeadamente pela Universidade dos Açores. Por exemplo, dizer que não se pode apanhar mais do que determinada quantidade pargo faz sentido, porque já sabemos que os stocks desta espécie estão num determinado estado. Mas generalizar isso é errado.
DI – Uma das justificações para esta legislação é necessidade de gerir e preservar os stocks existentes. Há base científica para esse argumento?
JPB – Não. Eu acho, sinceramente, que esta legislação é uma forma de tentar agradar os sindicatos dos pescadores profissionais, mas, ao mesmo tempo, enganando-os. A melhor maneira – e já propus isso várias vezes – de se saber, exactamente ou aproximadamente – a quantidade de peixe capturado na pesca lúdica é pedir aos pescadores que, de forma anónima, façam um relatório, anual por exemplo, do que capturam. Dessa forma, teríamos uma ideia aproximada do que foi apanhado. Esse documento seria entregue por cada pessoa voluntariamente no momento em que recolhessem a licença do ano seguinte.
DI – Mas rejeita a existência de licenças para a pesca lúdica?
JPB – Já há uma licença para a caça submarina. Admito que haja também licenças para os outros tipos de pesca lúdica, mas desde que não sejam a preços exagerados. Por exemplo, a licença para a caça submarina, neste momento, custa cerca de 15 euros. Não me parece um valor avultado. Há quem argumente que se a caça submarina paga, as outras também devem pagar. Acima de tudo, o importante é que quem paga a licença compreenda que isso tem algum sentido. Na minha opinião, acho que, neste momento, a licença só faz sentido se as pessoas também contribuírem com dados. Tirar licença para se entregar mais dinheiro à direcção regional das Pescas não faz sentido. Mais uma vez, estamos perante uma situação que podia ter sido bem pensada, e que, no concreto, parece um conjunto de ideias retiradas daqui e dali para satisfazer determinados grupos e, manifestamente, com uma carga politica forte, que em nada tem justificação científica. É isso que é visível nesta proposta, pelo menos nos moldes em que eu a conheço.
DI – Há soluções melhores?
JPB – Acho que tudo isto era dispensável se houvesse uma coisa que eu e outros andamos a dizer há anos: todas as zonas costeiras dos Açores têm hipótese de recuperar, e isso não implica montes de licenças e burocracia sem bases científicas; bastam pequenas reservas, estrategicamente localizadas, em todas as ilhas e com tolerância zero para a pesca. Esse é que era o passo inteligente, ficando todos satisfeitos.
DI – E há algum estudo sobre essa matéria?
JPB – Há sim. Existem várias propostas, existem análises ilha a ilha. No caso da Terceira, por exemplo, já indiquei muitos lugares. Imagine uma reserva junto ao Monte Brasil, associada ao parque arqueológico que já existe. Passado um ano, ao lado dessa reserva de tolerância zero existirá uma grande quantidade de peixe. Essa área, além disso, pode também ser aproveitada para o mergulho contemplativo. Como se vê, esta seria uma solução inteligente.
O Decreto
A proposta de Decreto Legislativo Regional que define o regime jurídico da pesca lúdica (aprovada em Conselho de Governo no final de Novembro do ano passado e agora em análise no parlamento açoriano) impõe a obtenção de uma licença junto da direcção regional das Pescas.O documento consagra ainda a proibição de venda dos espécimes capturados no exercício da pesca lúdica, ao mesmo tempo que estabelece o universo das modalidades de captura de espécies marinhas sem fins comerciais, prevê o leque de artes permitidas e as suas características e esclarece as regras aplicáveis quanto a tamanhos mínimos e períodos de defeso dos organismos vivos passíveis de pesca. O não cumprimento das regras aplicáveis será punido com coimas que poderão ir dos 25 euros aos 3.500 euros ou, no caso de pessoas colectivas, aos 15 mil euros. Estão ainda previstas sanções acessórias que poderão ir da perda das artes e outros equipamentos e utensílios à privação do direito de atribuição de licença. A proposta tem como principal objectivo incluir a pesca lúdica num sistema de gestão coerente com a Política Comum de Pescas da União Europeia, perspectivando a actividade do ponto de vista da defesa do ambiente, da conservação dos recursos e da preservação da natureza, designadamente do património biológico marinho. Surge, segundo o executivo insular, ainda na sequência da aprovação de legislação nacional sobre esta matéria. No Continente, a legislação também impõe o licenciamento da pesca lúdica, podendo uma licença custar entre três e 200 euros, com validade entre um mês e três anos. Por dia, cada pescador não pode capturar mais do que dez quilos de peixe. E numa embarcação com três ou mais tripulantes não podem exceder os 25 quilos. A legislação impõe ainda que os pescadores de calhau têm de estar distanciados, no mínimo, dez metros; e que as embarcações tenham de estar afastadas da costa pelo menos 50 metros. Quer no Continente, quer nos Açores, vários pescadores lúdicos já se manifestaram publicamente contra estes regulamentos.
(In Diário Insular)