São autênticos caminhos de lixo. Um passeio pela costa da freguesia de S. Mateus, na Terceira, transformou-se numa odisseia de plástico, garrafas de gás, sacos e outros entulhos.
São apenas alguns quilómetros de estrada, dois do porto de pesca ao Negrito, e a andar faz-se bem. Um bom exercício para o corpo e, acima de tudo, um eficaz exercício de consciencialização. A costa da freguesia de S. Mateus poderia ser, de facto, o palco de uma boa caminhada, não fosse um ou outro, ou muitos até, pormenores a estragar a vista.O mar, uma igreja velha, barcos de histórias e as casas de homens do mar em canadas e ruelas apertadas contrastam com o lixo que vai sendo deixado no caminho. Lixo que vai habituando o olhar e compondo a paisagem. Um problema.O passeio começou às 9h30 duma manhã ventosa a ameaçar chuva. A nós e aos guias da Gê-Questa - Associação de Defesa do Ambiente, juntou-se uma turma do quarto ano da Escola Primária de S. Bartolomeu, miúdos que carregam às costas o peso da responsabilidade de atenuar as trapalhadas ambientais dos mais velhos.O exercício chama-se Coastwatch e não é a primeira vez que a associação promove este tipo de eventos com os mais novos. “Hoje vamos ser vigilantes”, assegura Leonardo Machado, o guia que vai apontando, a cada 500 metros, o tipo de lixo que vamos encontrando pelo caminho e que tenta, assim, despertar os sentidos dos mais novos. “Pretendemos, com estas ações, sensibilizar as crianças para os problemas resultantes do impacto das atividades humanas no litoral”, continua. Com estas iniciativas, a Gê-Questa ambiciona ainda contribuir para a preservação das zonas costeiras, incentivando as crianças à participação na defesa do ambiente.O projeto Coastwatch, de caráter europeu e coordenado pela Irlanda desde 1988, conta com a colaboração de 23 países e é levado a cabo todos os anos. Para além da recolha de informação e monitorização do litoral, o programa abrange a vertente de educação ambiental e promove o envolvimento público nas decisões relacionadas diretamente com as zonas costeiras.A lista de lixos encontrados desde o porto de S. Mateus ao Negrito acabou por ser extensa: dos plásticos às latas, das garrafas de gás aos resíduos de construção civil, do papelão aos ferros, pneus, utensílios de pesca, aparelhos domésticos... “É um problema de todos”, acredita o guia, que fala ainda em desresponsabilização. “Estamos habituados a apontar o dedo uns aos outros, mas a verdade é que esta é uma questão que toca a qualquer um”.O problema é tanto mais difícil de compreender quando não existe nenhum estudo que quantifique e explique a questão da poluição marítima que, segundo Leonardo Machado, ictiólogo de formação, da Universidade dos Açores, “está longe de ser resolvido”.De facto, os resíduos encontrados ao longo da costa não provêm apenas de descargas diretas, e surgem também com as correntes marítimas. “Seja ou não lixo feito por nós, temos de nos responsabilizar por ele…é uma questão de integridade”, defende. Dos oceanos para a costa, da costa para os oceanos, a poluição nas zonas litorais constitui uma verdadeira bola de neve. E agora a poluição dos mares começa a ser também um problema para algumas espécies marinhas. É o caso das tartarugas, que confundem os plásticos com alforrecas ou moluscos, o seu alimento. Ou o caso das aves, atraídas pelas cores dos resíduos que flutuam à superfície. “Já existem vários documentos fotográficos que mostram, no esqueleto destes animais, resíduos de materiais que eles não conseguem digerir ou que entram pelas vias respiratórias, provocando a morte por sufocamento”, sustenta. E depois há o problema da ingestão de peixes contaminados com substâncias tóxicas. A defesa dos benefícios da reciclagem é a outra vertente do discurso de Leonardo Machado, “estudante de profissão”, como nos disse, brasileiro e há quatro anos nos Açores a fazer doutoramento. “Não podemos ser pessimistas e achar que os processos de reciclagem funcionam mal, o que não é o caso, e com isso justificar o facto de não separarmos o lixo nas nossas casas. Cada um deve fazer o seu papel”, continua. E assim a Gê-Questa apela a que cada um se empenhe individualmente e tenha um comportamento ecológico, colaborando na preservação do meio ambiente.
Mar de plásticoA tentar provar que a poluição marítima é um problema mundial estão dois biólogos norte-americanos, encarregues de levar a cabo o primeiro estudo global sobre a poluição marítima com plásticos. Os cientistas já percorreram o Atlântico Norte e agora estão a caminho dos Açores. O seu percurso pode ser acompanhado no sítio
http://www.5gyres.org/.Segundo dados divulgados online, todas as amostras obtidas até agora continham fragmentos de plástico. Assim, o projeto 5 Gyres vem mostrar como a poluição com resíduos artificiais está dispersa por todos os oceanos. O problema, asseguram, tem que ver com o consumo de produtos empacotados em embalagens desenhadas para durar para sempre. A solução passa mais uma vez pela reciclagem e pela redução do uso e produção de plásticos.Os resultados do estudo serão apresentados na Ocean Sciences Conference 2010, em Portland, nos EUA, no próximo dia 24.
Entulho em terra
Mas a questão na poluição marítima não é o único problema a resolver. Em novembro do ano passado, o DI noticiava um estudo que dava conta da existência de cerca de duas centenas de lixeiras selvagens, ou depósitos ilegais de resíduos, na Terceira.Segundo Ulisses Rosa, autor do estudo que pretendeu quantificar e identificar os depósitos ilegais em toda a ilha, os tipos de resíduos são variados. E também para ele o problema passa pela falta de educação ambiental. “O que se denota é uma grande falta de civismo e de respeito pelo espaço comum”, dizia ao DI.Tratam-se ainda de infrações à lei. Ulisses Rosa, que reconhecia uma mudança de atitude por parte das camadas mais jovens, não acreditava, no entanto, que esta fosse uma situação fácil de contornar, até porque um dos problemas passa pelo facto de esses depósitos funcionarem há já alguns anos.Ulisses Rosa pretende, assim, criar um registo que permita a monitorização e limpeza eficazes destes espaços, disponibilizando ainda os dados às autoridades competentes. Neste sentido, o guia da natureza defende uma maior interligação entre a GNR, as Câmaras Municipais e todas as entidades gestoras de resíduos, bem como uma maior focalização na educação ambiental.O trabalho “Georeferenciação de depósitos ilegais de resíduos na Terceira”, pioneiro na Região, será o mapa condutor da iniciativa “Limpar Portugal – Terceira”.De facto, os Açores serão parceiros na iniciativa “Limpar Portugal”, que decorre no dia 20 de março e cuja ação passará por limpar as zonas mais críticas das ilhas, ou seja, as zonas florestais e as zonas ribeirinhas.Mais do que a limpeza, o projeto pretende educar para o ambiente, promover a mudança de comportamentos e a qualidade de vida. Assim, os trabalhos serão realizados sobretudo por voluntários e apoiados por entidades públicas e privadas. Tal como dizia o ictiólogo Leonardo Machado, a trabalhar no Departamento de Ciências Agrárias da Universidade dos Açores, no passeio por S. Mateus, “é impossível saber se as crianças seguem em casa os conselhos que apontam para a reciclagem e protecão do ambiente em geral, mas é preciso ter esperança”.
(Este texto foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico)