segunda-feira, janeiro 12, 2009

Leite indexado

Uma fórmula indexante para o preço do leite ao produtor é urgente para que sejam tratadas as questões verdadeiramente importantes para o sector, defende o professor do Departamento de Ciências Agrárias do Campus de Angra do Heroísmo da Universidade dos Açores, José Matos, numa entrevista em que alerta para a necessidade de “falar verdade” à lavoura e para a ameaça vinda de Espanha.

Já defende uma fórmula indexante para o preço do leite ao produtor há vários anos. Recentemente foi anunciado que Governo Regional, associações agrícolas e indústria vão entrar em negociações para esse efeito. Espera que a fórmula vá de facto em frente?
Para mim essa não é uma grande questão, há outras bem mais importantes no sector. A minha sugestão foi sempre no sentido de afastar no caminho das questões importantes a discussão do preço, que é mais do que anual, é bianual. Essa discussão dos preços tem o condão, muitas vezes, de azedar o debate de temas importantes, que exigem que lavoura, Governo, indústria e até a Universidade dos Açores, estejam coesos na defesa de interesses comuns. Veja-se o que tem acontecido com o Centro do Leite e dos Lacticínios. Tem sido esta questão que tem azedado aquilo que é importante fazer no âmbito deste centro.
Este é um problema quase eterno. Porque é que não se deu o passo para o resolver mais cedo?
É verdade. A questão do preço entre o comprador e o vendedor é uma questão eterna. O que vende quer receber mais. O que paga quer pagar menos. É o funcionamento do mercado, sempre foi assim. Nasci numa exploração leiteira, o meu pai era produtor de leite e também assisti desde pequeno a este debate. Não é nada de novo a guerra dos preços. O que há de anormal é que não se procure encontrar uma fórmula matemática de resolver este problema. Se é um problema que tem a ver sistematicamente com a flutuação dos preços no mercado, obviamente é possível através de uma equação matemática que essa flutuação de preços se repercuta no preço pago ao produtor. Umas vezes para bem, outras para mal, obviamente.
A lavoura pode cair em alguma armadilha nesta negociação de uma fórmula indexante?
Como tudo na vida e também nesta questão, há sempre um lado positivo e negativo. Com uma indexação, existirão também aspectos menos positivos. Há que garantir, quer para a indústria, como para o produtor, que os aspectos negativos não sejam muito pesados. Não queremos a indústria nem a produção falidas. É necessário que à volta desta questão da fórmula haja um debate muito sério.
A Universidade dos Açores tem um papel neste debate?
Alguns especialistas da UA, nomeadamente na área da matemática, podem tê-lo. Mas a intervenção dos investigadores da área agrícola até seria contraproducente.
Porquê?
É a velha questão que tem também a ver com o Centro do Leite e dos Lacticínios. Os investigadores, os técnicos que podem dar apoio quer à produção como à indústria não devem estar envolvidos nesta questão do debate do preço. Isso é trazer algum elemento de desconfiança em relação a pessoas com as quais quer a lavoura como a indústria têm de manter uma relação de confiança absoluta.
Um representante da UNICOL já avançou que existe uma posição de princípio contra a fixação administrativa de preços…
Sei que há esse cepticismo e que isto é de certa forma julgado como uma fixação administrativa do preço do leite. Não é o que defendo. Cada fábrica pode defender a sua própria fórmula e garantir a concorrência. O que é certo é que nas nossas ilhas, muitas vezes, ou há monopólio ou não há possibilidade de fazer funcionar as regras do mercado. Seria bom que as regras do mercado funcionassem.
O que é exactamente esta fórmula indexante? Como funcionaria?
Pode funcionar em função de diversos factores, que podem contribuir para uma fórmula única. Mas essa fórmula seria depois ajustada em função da produção e transformação de cada indústria. Admito que numa indústria que tenha como transformação leite em pó a fórmula deva ter isso em consideração, como no caso de outra que produza leite líquido ou iogurtes. Não é isso que está em questão. São permitidas nuances quanto a ilhas e fábricas… Não é difícil, os matemáticos encarregar-se-ão disso.
Com esta fórmula a lavoura açoriana seria muito diferente?
Não. A fórmula é um factor menor. A lavoura açoriana seria muito mais beneficiada pela resolução de heranças do passado. A montante, a nível da produção há a questão da discussão da propriedade, a dispersão das explorações… Ainda mais tendo em conta que há uma dinâmica que leva à diminuição do número de produtores, o que ajuda a resolver estes problemas. Neste momento é mais necessário e mais fácil encará-los do que nunca, porque o número de produtores decresceu incomparavelmente e será mais fácil negociar, não há laços afectivos tão grandes à propriedade... Desde que temos quotas leiteiras, o número de produtores caiu para metade. Existem hoje perto de 800 produtores de leite na Terceira. Eu presumo que nos próximos 10 anos fiquemos apenas com metade dos que temos actualmente.
Este decréscimo é assustador ou pode, pelo contrário, ser positivo?
Não é nada assustador! No espaço de 15 anos a lavoura quintuplicou a produção de leite nos Açores, embora o número de produtores tenha baixado para metade. Existem explorações maiores, mais eficientes, mais empresariais, com outros tipos de tecnologias. A qualidade do leite tem melhorado e presumo que melhore ainda mais. O que é preocupante é que nalgumas ilhas, por problemas demográficos, de envelhecimento da população, a produção de leite esteja a desaparecer. É o caso do Pico, Flores, Faial. É pena que não existam políticas que tentem contornar este fenómeno, que é muito forte.
Mesmo com o esvaziamento destas ilhas, a produção de leite vai ser sempre o grande sector da economia açoriana?
Sem dúvida nenhuma. Acima de determinada altitude, a produção de pastagem, valorizada pela produção de leite, é a melhor aposta. Tendo isto em atenção, percebe-se que em algumas ilhas não haverá agricultura sem vaca leiteira. E sem agricultura não me parece muito fácil sustentar um determinado número populacional que justifique outras actividades económicas. É o caso do turismo. Não é possível ter turismo sem famílias. Os picarotos dedicavam-se à agricultura e à caça à baleia. Hoje, muitos dividem-se entre a agricultura e alguns serviços ao turismo. Não colocam os ovos todos no mesmo cesto… A agricultura é a base, a raiz do sustento da população. Agora, nalgumas ilhas, com o envelhecimento das populações, encaro com preocupação se, sem agricultura, vai ser possível manter outros serviços e actividades. Veja-se o que aconteceu no Continente. À medida que a agricultura foi desaparecendo do país, as populações migraram para os grandes centros. Nos Açores ainda se vai a tempo de se tentar travar este processo. Um dos aspectos importantes é garantir que a agricultura se mantenha viável.
O cenário que a lavoura traça nesta altura é muito negro. A Associação Agrícola da Ilha Terceira avisa que muitas explorações poderão entrar em falência. É mesmo assim ou trata-se apenas de uma fase?
Gostaria de prever que é apenas uma fase muito transitória. Há uma grande instabilidade dos mercados a nível mundial e os lacticínios estão nesse contexto. Em 2007 essa instabilidade fez com que os preços disparassem, com uma maior procura da China e Índia e menor produção da Nova Zelândia e a Austrália. Dessa euforia passou-se para a vaga de retorno. Há menor consumo nos mercados asiáticos e este ano a Austrália e Nova Zelândia já recuperaram. O ano de 2007 foi eufórico, mas o preço do leite em pó já desceu para metade. Isto tem impacto a nível global e local. O consumo diminuiu também…
Mas esta é uma fase ou é mesmo o cenário com que a lavoura tem de lidar?
Da mesma forma que 2007 foi eufórico, 2008 teve um dinamismo muito negativo. Penso que a meados deste ano as circunstâncias melhorem. Nunca veremos preços como os de 2007. Há no entanto outro elemento de instabilidade, que é a Política Agrícola Comum e o fim das quotas leiteiras em 2015. Achei sempre muito estranho que se defendesse que a quota acabasse, mas parece que agora todos acham que a quota é importante. Isto porque é fácil perceber que o nosso principal concorrente em termos de mercado é a Espanha que, quando negociou as suas quotas, negociou abaixo das suas necessidades. Os Açores fizeram o contrário, foram claramente beneficiados, o que permitiu o crescimento do sector. Espanha é agora obrigada a comprar leite em Portugal. No momento em que a quota acabar, os espanhóis vão tornar-se excedentários na produção de leite e vão invadir o mercado português, nomeadamente o mercado de Lisboa, que é o mais importante para os lacticínios dos Açores. Logo a seguir a esta crise deveremos ter outro embate e temos de cuidar muito da competitividade do nosso sector.
Está-se a fazer o suficiente?
O fim das quotas do espaço da União Europeia é já em 2015…Está-se a fazer algumas coisas. Os próprios produtores estão, por exemplo, a cuidar da rentabilidade do seu processo produtivo, tratando, assim, também da competitividade do sector. Agora, com a entrada de Espanha no jogo, os produtores açorianos terão de produzir mais barato, é preciso dizer isso desde já.
Essa é uma mensagem dura para a lavoura…
Certo que sim, mas estamos numa altura em que há necessidade de falar com verdade, não dourar a pílula. É preferíveis termos uma pílula amarga e defendermos o nosso sector, desde o Governo, lavoura, políticos e universitários, sabendo que vêm dias maus. Temos muitos problemas, nomeadamente a nível de transformação e inovação.
Os produtos transformados dos Açores não são aliciantes neste mercado que se avizinha?
Têm sido o garante do crescimento do sector nos Açores, mas penso que não o continuarão a ser. Na Nova Zelândia, que tem muitas características semelhantes às dos Açores, a maior cooperativa de produção de lacticínios do país invadia o mercado mundial com um queijo. Neste momento tem 10. Oferece bebidas, produtos fermentados, com vários aspectos. Muitas vezes é o mesmo produto, com outra imagem. Temos de diversificar e aproveitar tecnologias de marketing.
Que peso tem a marca Açores?
Tem um peso enorme. É conhecida a qualidade do nosso processo produtivo. Sabe-se que as vacas andam livres, em pastagem, que têm uma alimentação natural. Todos no Continente conhecem essa imagem. Falta jogar totalmente esse grande trunfo. Todos nós conhecemos os anúncios de uma empresa do Continente que vende leite líquido como sendo natural, com animais em pastagem, até se vêem algumas imagens que parecem filmadas nos Açores. Fomos claramente ultrapassados por essa campanha de marketing. Agora, se surgirmos com algo semelhante, será sempre uma imitação. Devíamos ter feito isto há uns cinco anos atrás. Há claramente aqui uma corrida atrás do tempo. Que é preciso fazer.
(In DI-Revista)

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