Uma turfeira de esperança
O ciclo da água esteve à beira de ser interrompido na Terceira. Leis visionárias que ficaram por cumprir; análises erradas e erros de previsão; uma ideia maligna de desenvolvimento – são causas da destruição do principal sistema natural de armazenamento de água da ilha. Um plano para recuperar o ciclo da água aposta na capacidade de regeneração da natureza entregue a si própria. Todas as esperanças têm agora um nome: chamam-se turfeiras.
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Em Agosto de 1977, a então Assembleia Regional dos Açores aprovava a primeira legislação no tempo autonómico sobre a protecção de ribeiras, lagoas e nascentes de água e respectivas bacias hidrográficas. Um documento inovador para a altura, sobretudo em Portugal, mas também ao nível internacional, conforme reconhece o secretário regional do Ambiente, Álamo Meneses, especialista académico na área. Cerca de 31 anos depois, em Janeiro de 2008, a secretário do Ambiente declara o falhanço do aparelho normativo açoriano de protecção dos recursos hídricos e das sucessivas políticas regionais para o sector (ou ausência delas), ao reconhecer que o colapso na produção, captação e distribuição de água na ilha Terceira só pode ser evitado através do regresso à natureza na única zona fiável de produção hídrica, que é constituída pelo complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto, sujeito a arroteias (desde 1976 e até ao presente) e consequente destruição da vegetação endémica, em particular as turfeiras, responsáveis pelo armazenamento natural de água e que praticamente desapareceram em vastas extensões da zona.A comunidade científica ligada à Universidade dos Açores na Terceira vinha denunciando a degradação das condições naturais de armazenamento de água desde há vários anos, aparentemente sem ser ouvida. Até que no Verão passado a água faltou nas torneiras dos consumidores do concelho de Angra do Heroísmo, relançando o debate sobre as causas da escassez. Ficou claro no debate que, entre muitas causas – incluindo erros de previsão e de gestão e até diminuição da pluviosidade -, a principal estava na destruição do tecido vegetal natural na zona de recarga dos aquíferos principais (Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto). Ou seja, os cientistas da Universidade dos Açores tinham razão.Álamo Meneses não só veio dar razão aos cientistas da Terra-Chã/Pico da Urze, como agiu no sentido por eles já várias vezes preconizado, ao anunciar o início de um vasto plano de recuperação das condições de recarga natural dos aquíferos, confirmando ser essa a única solução sustentável para garantir o abastecimento de água à ilha Terceira. O plano teve de imediato o apoio, expresso à nossa reportagem, de cientistas como Cota Rodrigues, Félix Rodrigues, Eduardo Brito de Azevedo e Eduardo Dias, os mesmos que desde há vários anos vinham analisando a situação e apontando caminhos até agora não trilhados.Mas o apoio unânime não quer dizer que a medida seja a solução garantida só por si. Eduardo Dias, por exemplo, chama a atenção para o facto de a desarborização em altitude poder influenciar de forma significativa a capacidade de armazenamento de água, mesmo depois de as turfeiras recuperarem. É que as árvores em altitude são auxiliares indispensáveis à precipitação significativa de água nas turfeiras. Quer isto dizer que pode-se chegar a um ponto em que as turfeiras tenham recuperado, mas não estejam a receber água suficiente. É por isso que Eduardo Dias chama a atenção para a necessidade de rearborizar zonas de altitude que comprovadamente interfiram no processo de precipitação na zona Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto.
Colapso do sistema
O complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto, situado no centro da Terceira, é a zona principal e mais fiável de produção de água na ilha Terceira. A parte Oeste da ilha é demasiado jovem para produzir água em quantidade e qualidade aceitáveis e a zona da Praia da Vitória, sendo embora antiga, está demasiado fissurada para permitir aproveitamentos significativos de água. Esta análise é partilhada por Álamo Meneses, que neste caso presta declarações enquanto especialista académico, e Cota Rodrigues, especialista em hidráulica.O complexo alimenta três grandes fontes e cerca de uma dezena de outras fontes de menor dimensão, que, em conjunto, garantem a parte de leão do abastecimento de água à ilha Terceira canalizado sem ser a partir de furos. Para mais, trata-se de água que as análises comprovam ser de boa qualidade, ao contrário da água dos furos que se alimentam no aquífero-base (o principal aquífero da ilha, que está em contacto com o mar), sempre sujeita a processos de salinização (mistura entre água doce e água do mar) e susceptível de depositar a poluição que se gera à superfície, em particular os metais pesados, conforme chamam a atenção os especialistas e o próprio secretário Álamo Meneses. A pressão sobre a água da Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto tem várias origens. Desde logo, segundo dados citados por Álamo Meneses, o consumo de água por habitante subiu na Terceira, nos últimos trinta anos, de 100 litros por dia para mais de um metro cúbico, ou seja, subiu mais de dez vezes. Também subiu significativamente o consumo de água pela lavoura. Para além do consumo próprio dos animais, novas regras de higiene e salubridade nas explorações induziram consumos ainda mal calculados. Por outro lado, a pluviosidade tem descido. Dados dos últimos sete meses de 2008 (Centro de Estudos do Clima, Meteorologia e Mudanças Globais da Universidade dos Açores) indicam descidas, em Angra do Heroísmo, Cabrito e Pico da Bagacina, superiores a sessenta por cento à média dos anos 1970/99. A subida do consumo e a descida da pluviosidade - que dados difusos, que não conseguimos confirmar com rigor, remontam há cerca de dois anos, pelo menos no interior da ilha - precipitaram a escassez de água devido às arroteias e à destruição do coberto vegetal na Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto. O ciclo da água foi quebrado nessa zona, conforme explica Cota Rodrigues. A precipitação, independentemente da quantidade, passou a infiltrar-se com rapidez e a água a sair também com rapidez nas nascentes. Perdeu-se o ciclo lento, garantido pelas turfeiras, que armazenavam água no Inverno e continuavam a infiltração para os aquíferos durante a Primavera e o Verão. Conforme explica Álamo Meneses, quanto mais chovesse no Inverno, maiores seriam os caudais nas nascentes nessa estação. Mas, em qualquer caso, as nascentes desceriam sempre para níveis críticos na época de menos chuvas. Conforme reconhece o secretário, a escassez de chuva pode ter precipitado a situação, mas o colapso do sistema era uma questão de tempo, mesmo que chovesse em abundância.
Os “inocentes” do costume
As arroteias começam a ser realizadas na zona crítica de infiltração de água na segunda metade dos anos setenta do século XX, com o então Plano Pecuário dos Açores (PPA). Este plano, lembra Álamo Meneses, acabou por concretizar nos Açores um sonho antigo, já do século XIX, de arrotear e disponibilizar para a produção pecuária vastas zonas que estavam entregues à natureza e que se consideravam, à base do senso-comum da época, desaproveitadas.No entanto, o PPA avança contra a lei, uma vez que o Decreto Regional nº 12/77, de 20 de Agosto – a tal lei inovadora que se refere no início deste trabalho – já chamava a atenção para aspectos de protecção das nascentes que ainda hoje são considerados actualizados. Por exemplo, os efeitos da actividade humana na degradação da água são referidos, tal como é referida a necessidade de preservar os aquíferos. As bacias hidrográficas são consideradas zonas a proteger e são definidas áreas e medidas de protecção. A lei prevê coimas para os prevaricadores.Ao que tudo indica, a lei regional inovadora, que, aliás, permanece em vigor, não foi aplicada e o mesmo tem acontecido com todas as leis subsequentes, incluindo as directivas europeias. Eduardo Dias lembra que as turfeiras destruídas com as arroteias são protegidas por directivas comunitárias “desrespeitadas sistematicamente”. O resultado desta tábua rasa legal é a transformação do solo em pastagens. O processo que começou há trinta anos na Caldeira Guilherme Moniz continua ainda hoje, conforme a nossa reportagem observou e fotografou. Álamo Meneses entende que não é útil abrir uma caça às bruxas neste processo, mas sim “resolver o problema”. Há arroteias públicas e arroteias privadas autorizadas por organismos públicos. O mais comum foi “uma ideia de desenvolvimento sobrepor-se a outra, que hoje sabemos não ser a mais correcta”. A solução do secretário do Ambiente é aprovar, “com urgência”, legislação que concentre as autorizações para intervir em zonas que devem estar protegidas. “Assim evita-se a dispersão e uniformizam-se os critérios”, disse.No caso da Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto, a solução vai passar, “onde se revelar necessário”, por intervir depois do facto consumado, o que significa que a Região deverá avançar para limitações ao uso do solo e expropriações de zonas que sejam indicadas para ficarem entregues à natureza, em nome do interesse público. E do mal feito não haverá procura de culpados.
Turfeiras recuperam depressa e bem
As turfeiras da ilha Terceira são endémicas, o que quer dizer que os estudos realizados em outras áreas podem não se adaptar às turfeiras locais. O que interessa apurar é o modo como as turfeiras recuperam quando um terreno é devolvido à natureza, para assim se tirarem conclusões sobre o tempo que é preciso esperar para que o ciclo da água normalize no complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto. Segundo Eduardo Dias, que tem trabalhado com as turfeiras locais, um bom exemplo pode ser recolhido na Lagoa do Negro. A zona deixou de servir de pastagem para gado há cerca de quinze anos e as turfeiras já têm hoje uma dimensão significativa. Eduardo Dias acredita que em duas décadas poderá ser possível recuperar zonas de turfeiras pré-existentes, tendo mais dúvidas sobre o tempo necessário para reintroduzir turfeiras em zonas onde hoje existem pastos suportados à base de adubação.A reportagem de DI conseguiu observar a recuperação de uma turfeira numa zona do Cabrito onde foi removido um tanque de combustíveis norte-americano há cerca de oito anos. A turfa ainda é pequena, mas já ocupa o solo duma forme significativa. Melhor recuperação evidenciam turfeiras localizadas em pastos abandonados numa zona mais alta, também no Cabrito, situação que a reportagem do DI também observou.Uma turfeira adulta retém cerca de sete litros de água por cada quilo da sua massa e drena essa água lentamente para o interior dos aquíferos sobre os quais se situa. Os especialistas afirmam que, além de ser um método natural, é o melhor método que se conhece de armazenamento de água, sendo que a drenagem acontece normalmente, sem necessidade de intervenção humana.
Soluções engenhosase erros de previsão
As crises de água não são desconhecidas na ilha Terceira. Por exemplo, a literatura refere uma crise significativa na segunda metade do século XIX e a memória colectiva ainda guarda bem viva a crise do início dos anos noventa do século XX, que antecedeu a crise agora em curso.Em cada crise o homem encontra uma solução, melhor ou pior. Na crise do início dos anos noventa do século XX a solução passou pela abertura de furos. Sabe-se hoje que a solução não foi a melhor a médio e longo prazo, sobretudo porque essa crise já anunciava o colapso do complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto, que, no entanto, ninguém à altura foi capaz de identificar.O próprio secretário Álamo Meneses, que, à altura, como perito da Universidade dos Açores, estudou a situação e escreveu sobre a crise, confessa hoje que também ele não foi capaz de identificar a situação. “Penso que ninguém à altura identificou o verdadeiro problema, que hoje sabemos ser de ordenamento do território”, enfatizou Meneses.Antes, no século XIX, a falta de água afectou de forma dramática a freguesia de Santa Bárbara, obrigando a população e as autoridades a serem engenhosas. A solução foi a construção de um reservatório de enormes dimensões para a altura e considerado muito dispendioso para as finanças públicas da época.Tal reservatório, inspirado nas cisternas que sempre abasteceram a zona – de fracos recursos hídricos, note-se -, cumpriu a sua missão desde a época em que foi construído até ao sismo de um de Janeiro de 1980, altura em que foi instalada uma rede domiciliária de distribuição de água.O “Reservatório de Santa Bárbara”, como é conhecido, implantado nas margens da Ribeira das Sete, na encosta da Serra de Santa Bárbara, está hoje envolvido por uma zona de lazer e é considerado uma notável construção em alvenaria de pedra, podendo ser visitado pelo público.
(In DI-Revista)Turfeiras recuperam depressa e bem
As turfeiras da ilha Terceira são endémicas, o que quer dizer que os estudos realizados em outras áreas podem não se adaptar às turfeiras locais. O que interessa apurar é o modo como as turfeiras recuperam quando um terreno é devolvido à natureza, para assim se tirarem conclusões sobre o tempo que é preciso esperar para que o ciclo da água normalize no complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto. Segundo Eduardo Dias, que tem trabalhado com as turfeiras locais, um bom exemplo pode ser recolhido na Lagoa do Negro. A zona deixou de servir de pastagem para gado há cerca de quinze anos e as turfeiras já têm hoje uma dimensão significativa. Eduardo Dias acredita que em duas décadas poderá ser possível recuperar zonas de turfeiras pré-existentes, tendo mais dúvidas sobre o tempo necessário para reintroduzir turfeiras em zonas onde hoje existem pastos suportados à base de adubação.A reportagem de DI conseguiu observar a recuperação de uma turfeira numa zona do Cabrito onde foi removido um tanque de combustíveis norte-americano há cerca de oito anos. A turfa ainda é pequena, mas já ocupa o solo duma forme significativa. Melhor recuperação evidenciam turfeiras localizadas em pastos abandonados numa zona mais alta, também no Cabrito, situação que a reportagem do DI também observou.Uma turfeira adulta retém cerca de sete litros de água por cada quilo da sua massa e drena essa água lentamente para o interior dos aquíferos sobre os quais se situa. Os especialistas afirmam que, além de ser um método natural, é o melhor método que se conhece de armazenamento de água, sendo que a drenagem acontece normalmente, sem necessidade de intervenção humana.
Soluções engenhosase erros de previsão
As crises de água não são desconhecidas na ilha Terceira. Por exemplo, a literatura refere uma crise significativa na segunda metade do século XIX e a memória colectiva ainda guarda bem viva a crise do início dos anos noventa do século XX, que antecedeu a crise agora em curso.Em cada crise o homem encontra uma solução, melhor ou pior. Na crise do início dos anos noventa do século XX a solução passou pela abertura de furos. Sabe-se hoje que a solução não foi a melhor a médio e longo prazo, sobretudo porque essa crise já anunciava o colapso do complexo Caldeira Guilherme Moniz/Maciço do Pico Alto, que, no entanto, ninguém à altura foi capaz de identificar.O próprio secretário Álamo Meneses, que, à altura, como perito da Universidade dos Açores, estudou a situação e escreveu sobre a crise, confessa hoje que também ele não foi capaz de identificar a situação. “Penso que ninguém à altura identificou o verdadeiro problema, que hoje sabemos ser de ordenamento do território”, enfatizou Meneses.Antes, no século XIX, a falta de água afectou de forma dramática a freguesia de Santa Bárbara, obrigando a população e as autoridades a serem engenhosas. A solução foi a construção de um reservatório de enormes dimensões para a altura e considerado muito dispendioso para as finanças públicas da época.Tal reservatório, inspirado nas cisternas que sempre abasteceram a zona – de fracos recursos hídricos, note-se -, cumpriu a sua missão desde a época em que foi construído até ao sismo de um de Janeiro de 1980, altura em que foi instalada uma rede domiciliária de distribuição de água.O “Reservatório de Santa Bárbara”, como é conhecido, implantado nas margens da Ribeira das Sete, na encosta da Serra de Santa Bárbara, está hoje envolvido por uma zona de lazer e é considerado uma notável construção em alvenaria de pedra, podendo ser visitado pelo público.
Etiquetas: Álamo de Meneses, Cota Rodrigues, Eduardo Brito de Azevedo, Eduardo Dias, Falta de água, Félix Rodrigues, turfeiras
1 Comments:
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