segunda-feira, fevereiro 09, 2009

O Legado de Galileu

Carlos Martins (*)
Galileu Galilei nasceu em Pisa a 15 de Fevereiro de 1564 e morreu a 8 de Janeiro de 1642 em Arcetri (Florença). A sua originalidade não reside no que descobriu, mas na forma como interpretou e comunicou as suas descobertas. Quando nasceu, as universidades eram dominadas pela astronomia geocêntrica de Ptolomeu e pela filosofia de Aristóteles, que postulava uma Terra em permanente mudança e feita de quatro elementos, por oposição aos céus imutáveis e feitos de um quinto elemento. Quando morreu, essas duas teorias estavam também mortas.


Em 1609 uma carta de Paolo Sarpi informou-o da existência, em Veneza, de um instrumento que permitia ver com facilidade objectos distantes, e imediatamente procurou reproduzi-lo e melhorá-lo. O telescópio revelou milhares de novas estrelas nas constelações já conhecidas (e em particular na Via Láctea), mas foram as suas observações do Sistema Solar que tiveram consequências mais dramáticas.
Galileu não foi o primeiro a ver a Lua através de um telescópio (Thomas Harriot fê-lo vários meses antes), mas observou que, tal como a Terra, contém montanhas e vales e não é perfeitamente esférica. De facto conseguiu mesmo medir a altura de várias montanhas lunares, com uma precisão notável para os meios de que dispunha. Estes resultados mostravam a similitude da Terra e da Lua, objectos sólidos com superfícies irregulares iluminados pelo Sol e presumivelmente feitos das mesmas substâncias.
Galileu não foi o primeiro a observar as manchas solares. Christoph Scheiner (conhecido por Fabricius) observou-as e anunciou a descoberta primeiro, sugerindo que se tratava de satélites solares anteriormente desconhecidos. Galileu conseguiu demonstrar que as manchas solares se encontravam junto à superfície do Sol, interpretando o seu movimento como o resultado da rotação do Sol (cujo período estimou em um mês), embora tenha erradamente defendido que se tratava de nuvens. A descoberta de um Sol em permanente mudança foi um duro golpe na filosofia aristotélica. Galileu criticou também a ingenuidade da análise de Fabricius. Sendo este um jesuíta, tal teve o efeito de voltar toda a ordem contra Galileu, e isto viria a ser crucial para os problemas que viria a ter com a Inquisição.
Detractores da hipótese heliocêntrica de Copérnico salientavam que se todos os planetas se movessem à volta do Sol então Mercúrio e Vénus, tal como a Lua, deveriam ter um ciclo de fases. No modelo de Ptolomeu, Vénus e o Sol movem-se à volta da Terra: se Vénus estivesse mais próximo da Terra do que o Sol, seria sempre visto como um crescente; se estivesse mais afastado, seria sempre visto como um disco completo. Mas se Vénus se move à volta do Sol, deve ser visível em todas a fases. As observações de Galileu demonstraram que todas as fases eram visíveis: Vénus move-se à volta do Sol, e o modelo de Ptolomeu está errado. Por outro lado, estas observações eram compatíveis quer com o modelo de Copérnico quer com um modelo alternativo sugerido por Tycho Brahe (no qual os planetas se moviam à volta do Sol mas o Sol se movia à volta da Terra).
Mas a mais dramática das observações de Galileu foi a identificação de quatro satélites de Júpiter. Aqui, mais uma vez, não é claro que tenha sido ele o primeiro a observá-los. Um segundo candidato a essa honra é Simon Marius, aluno de Tycho Brahe. Em qualquer caso, Galileu foi o primeiro a aperceber-se da sua importância. Uma segunda crítica ao modelo de Copérnico era que uma Terra em movimento à volta do Sol seria incapaz de manter junto de si a Lua. A partir de 7 de Janeiro de 1610, Galileu observou quatro ‘novas estrelas’ junto a Júpiter, movendo-se relativamente a este e por vezes desaparecendo. Muito rapidamente explicou este comportamento sugerindo que se moviam à volta de Júpiter, tal como a Lua se move à volta da Terra. Assim sendo, Júpiter conseguia manter 4 luas junto a si, e ninguém tinha dúvidas de que Júpiter se movia (a dúvida era sobre se o fazia à volta da Terra ou do Sol). Porque não poderia então uma Terra em movimento manter consigo a Lua?
A 13 de Março o Sidereus Nuncius (Mensageiro Celeste) era publicado em Veneza, descrevendo observações feitas até ao dia 2 de Março. No espaço de algumas semanas as descobertas de Galileu tornaram-se conhecidas em toda a Europa. O termo satélite (de satelles, um assistente de uma pessoa importante) foi introduzido por Kepler em 1611, e os nomes actuais dos quatro (Io, Europa, Ganimedes e Calisto) por Simon Marius. Mais tarde Galileu determinou os períodos orbitais dos quatro satélites, e verificou que estes aumentavam com a distância a Júpiter: eis uma versão mais pequena do Sistema Solar tal como descrito por Copérnico! Além disso, manifestamente nenhum dos quatro orbitava a Terra, em flagrante contradição com o modelo de Ptolomeu.
A Universidade de Pádua era uma praça-forte do aristotelianismo, e refutou a existência dos satélites com um argumento simples: uma vez que Aristóteles nunca os mencionou, não podem existir. Quando Galileu, num debate público, tentou convencer os seus colegas de Pádua pedindo-lhes simplesmente para olharem através do telescópio estes recusaram. Estava também em jogo saber se aquilo que o telescópio mostrava era real ou apenas uma ilusão. A doutrina aristotélica era clara sobre este ponto: o olho humano era a única fonte de visão do mundo material. Óculos e lentes eram obviamente conhecidos (e tolerados como um mal necessário), mas um instrumento que revelava estrelas completamente desconhecidas era ainda mais suspeito: uma vez que as lentes podiam distorcer imagens, não poderiam também criá-las onde não existiam?
Para obter maiores ampliações, os telescópios de Galileu tinham campos de visão extremamente pequenos. Além disso não tinham qualquer suporte. Qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de manusear uma réplica dos seus telescópios facilmente se aperceberá da enorme perícia necessária para os usar. Neste ponto, Galileu era prejudicado pela sua própria habilidade: era frequente tentar mostrar as suas descobertas a outras pessoas (explicando-lhes para onde deviam apontar o telescópio) e estas eram incapazes de ver o que quer que fosse, simplesmente por não conseguir usá-lo da melhor forma.
A partir desta altura Galileu defendeu publicamente o heliocentrismo, e o seu prestígio, associado ao facto de escrever frequentemente em Italiano (muito mais acessível ao público em geral do que o Latim) tornaram-no objecto da ira da igreja católica. Em 1616 Pio V declarou a Terra em repouso e o heliocentrismo herético. No entanto o geocentrismo estava condenado, e em poucas décadas os seus defensores tinham desaparecido das universidades europeias.
A introdução do telescópio criou um problema adicional para a igreja. A forma como Galileu usou a evidência adquirida com o telescópio implica um acesso à verdade independente da revelação, e permite a cada indivíduo interpretar por si próprio o livro da natureza – o que até então estava reservado à igreja. Um dos legados de Galileu foi o tirar a ciência para fora dos claustros universitários, trazendo-a até à linha da frente do debate público: não só defendeu as suas ideias sem subserviência ao status quo, mas publicitou-as e esforçou-se por popularizá-las quando apropriado. Com isto, o debate deixou de ser sobre as observações e centrou-se na sua interpretação.
As duas grandes revoluções científicas da história da humanidade têm origem em cortes radicais com o passado. Os cientistas da Grécia clássica separaram conhecimento e mitologia, enquanto os do século XVII libertaram a ciência do domínio da igreja. A diferença entre as duas é que a primeira uniu ciência e filosofia, enquanto a segunda voltou a separá-las. Galileu e os seus sucessores são investigadores da natureza e não filósofos, e desde então os contactos ocasionais entre ciência e filosofia limitam-se a discussões epistemológicas, sem afectar os métodos da primeira.

(*) Investigador Ciência 2007 do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto, Investigador associado do DAMTP, Universidade de Cambridge e Visitante do Instituto Galileu Galilei, Florença. Colabora com este artigo nas actividades do Ano Internacional da Astronomia organizadas nos Açores, coordenadas pelo Professor Miguel Ferreira do Departamento de Ciências Agrárias da Universidade dos Açores.
(in Diário Insular)

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