Sou o que o Marketing põe na tua cabeça
-Nós aqui pelos Açores nunca percebemos bem o teu aparecimento no nosso Natal. Antes era o Menino Jesus que dava as prendas, depois chegaste tu, Pai Natal, e ocupaste o imaginário das nossas gentes. Afinal, quem és tu?
-Oh, oh, oh… Eu sou quem tu quiseres que eu seja. Sou a felicidade das crianças que recebem as prendas e dos comerciantes que as vendem. Há quem me chame o comilão do 13º mês. Sou a fome de quem tira à sua boca e à dos seus para encher o saco da obrigação social de dar, de receber e de visitar. Sou o espírito da globalização e do consumo. Sou, sempre, uma criatura do meu tempo. Por isso não envelheço. Oh, oh, oh… O outro de que falaste, o tal de Menino Jesus, esse era um unhas de fome. Dava laranjas do quintal e trigo em pratos de chávenas de chá. Nos melhores dias oferecia uns figos passados da “venda” e uma ou outra peça de roupa ou calçado para ir à missa. Não movimentava a economia, não era cosmopolita, por isso foi… afastado, digamos assim. Oh, oh,oh…
-Pai Natal, afinal, se calhar, parece-me que podes não ser aquele velhinho simpático que o marqueting vende… Pareces-me, até, uma alma um pedaço negra…
-Bem… Oh, oh, oh… Eu sou o que o marqueting põe na tua cabeça. Para quase todos sou um velhinho simpático que anda de renas pelos céus a distribuir prendas às criancinhas. Sou o mentor da caridadezinha com que as televisões sobem as audiências nesta época. Tudo isso se faz por conta do espírito que eu semeio pelo mundo. É em meu nome que se vendem livros e DVD´s, que se realizam superproduções. Criaturas egoístas e narcísicas arreganham os dentes para as câmaras enquanto lambuzam miseráveis previamente desinfectados e desinfestados. Tudo isto é o que é. Oh, oh, oh… Este é o mundo que vocês criaram e no qual me atribuíram um papel, que tenho cumprido conforme as cláusulas do contrato. Se sou uma alma negra, se calhar sou a vossa alma colectiva. E se não te dás bem com as regras do mundo em que vives… oh, oh, oh… o melhor é mudares de mundo. Imagina, por breves momentos, que existes num mundo criado por ti próprio, sem as cláusulas do contrato que te impusemos.
-Que mundo seria esse?
-Até tenho medo de pensar nisso. Oh, oh, oh… Posso ser despedido. Mas como sei que não me vais trair, porque sou a tua fonte e tu és jornalista… Em qualquer caso, se disseres que eu disse, eu desminto, percebeste? Oh, oh, oh… Bem, o que eu gostava era que fosse verdade tudo o que de bom dizem de mim. Que tenho uma oficina no Pólo Norte que faz brinquedos todos os anos para eu oferecer às criancinhas no Natal; que ando de trenó puxado a renas tão velozes como um raio de luz; que as pessoas fazem mesmo o bem imbuídas do meu espírito, sem esperarem nada em troca e sem hipocrisias. Oh, oh, oh… E digo-te mais: o que eu gostava mesmo era de conversar um dia destes com esse tal de Menino Jesus. Talvez ele me conseguisse explicar como é possível levar a felicidade a uma família com laranjas, trigo em pratos de chávenas de chá e figos passados da “venda”.
-Haverá solução para este mundo louco, Pai Natal?
-Oh, oh, oh… Oh, oh, oh… Oh, oh, oh…
(In Diário Insular)
Etiquetas: Natal
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