segunda-feira, agosto 10, 2009

Moléculas interestelares e a origem da vida

Célia Silva
Para tentar responder a esta última pergunta, os investigadores utilizam uma estratégia que consiste na averiguação das características químicas que são comuns a todas as formas de vida conhecidas actualmente. Uma característica que todas as formas de vida conhecidas partilham é a presença de compostos orgânicos (contendo carbono) semelhantes. Todas as proteínas presentes nos organismos são basicamente constituídas por 20 tipos diferentes de aminoácidos. As proteínas são essenciais aos organismos pois servem para funções cruciais ao funcionamento dos sistemas biológicos. No entanto, para que exista vida, é também necessária a presença de um sistema auto-replicante. Este é assegurado por uma outro tipo de molécula: os ácidos nucleicos que incluem o DNA e RNA (ADN e ARN). Estas moléculas complexas são formadas por um grande número de pequenas moléculas chamadas de nucleótidos. No DNA existem apenas 4 tipos diferentes de nucleótidos que, em diferentes combinações, são portadores da informação genética que pode ser transmitida de geração em geração. Podemos fazer a analogia com a utilização das letras do alfabeto (neste caso 26 letras diferentes) que, quando combinadas de uma forma adequada, transmitem a informação ao leitor.
Quando a Terra se formou há cerca de 4,5 mil milhões de anos, esta teria um aspecto inóspito, bem diferente do que tem agora. A Terra formou-se como uma massa de rocha fundida sem atmosfera, mas, a pouco e pouco, começou a arrefecer e as rochas cristalizaram a partir do magma incandescente. Mesmo depois da formação de uma crosta totalmente sólida, a Terra continuava a possuir uma intensa actividade vulcânica que lançava gases e vapor de água para a atmosfera. Estima-se que a vida na Terra tenha aparecido há cerca de 3,5 mil milhões de anos, altura em que a atmosfera terrestre era muito pobre em oxigénio, sendo constituída maioritariamente por dióxido de carbono, vapor de água, hidrogénio, metano e amónia.Nos anos 50, Stanley L. Miller realizou uma experiência que ficou célebre. Juntou os gases que na altura se pensava fazerem parte da atmosfera primitiva (água, hidrogénio, metano e amónia) e fez passar descargas eléctricas que simulavam os relâmpagos a que a atmosfera primitiva estava sujeita. Os resultados foram surpreendentes, pois nessa experiência foram obtidas moléculas orgânicas, essenciais para os seres vivos, a partir de moléculas mais simples encontradas no ambiente. Os compostos obtidos por este processo incluíam aminoácidos, açúcares e bases dos ácidos nucleicos constituindo assim os “blocos de construção” dos seres vivos. Apesar de actualmente se pensar que a composição da atmosfera primitiva não corresponder exactamente à que foi usada na experiência de Miller, esta experiência demonstrou que muitos dos elementos de construção dos seres vivos podem ser produzidos em processos não biológicos. A experiência de Miller permitiu validar a hipótese de que os oceanos primitivos constituíam uma espécie de “sopa primordial” onde numerosas moléculas orgânicas se foram acumulando, dando origem aos primeiros seres vivos. Todos os 20 aminoácidos que fazem parte das proteínas podem ser obtidos desta forma, demonstrando ser possível nessas condições produzir as moléculas fundamentais da vida.
Contudo, o mais surpreendente é que muitas das moléculas biológicas produzidas nas experiências de Miller foram encontradas também no espaço.Em Setembro de 1969 caiu na Austrália um meteorito com cerca de 100 kg. Na altura vivia-se um ambiente entusiástico por tudo relacionado com o espaço devido à chegada do Homem à Lua ocorrida no mesmo ano, na missão Apolo 11. Por essa razão, foram utilizados todos os cuidados para que o meteorito fosse preservado num ambiente protegido de contaminações terrestres. Esse meteorito foi considerado ser originário de um cometa devido ao seu elevado conteúdo em água (12%) e nele foram encontradas inúmeras moléculas orgânicas, destacando-se os 92 aminoácidos diferentes. Dezanove desses aminoácidos foram identificados na Terra, sendo os restantes de origem extra-terrestre.Inúmeras moléculas orgânicas foram já encontradas no espaço. Através de equipamentos sofisticados montados nos telescópios e de técnicas designadas de espectroscopia de infravermelho é possível captar a radiação emitida pelas moléculas presentes na poeira interestelar. Cada átomo ou molécula pode ser identificado pelo espectro de radiação que emite, como uma espécie de “impressão digital” específica para cada entidade química. Deste modo, foram já identificadas na poeira interestelar e cometas, desde moléculas orgânicas mais simples como metano e álcool, até moléculas complexas como hidrocarbonetos, idênticos aos que existem na gasolina e gasóleo, e hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (PHA), compostos formados quando por exemplo, grelhamos os alimentos. Mais recentemente, foi lançada pela NASA a sonda “Stardust” com o objectivo de recolher amostras de partículas libertadas pelo núcleo de cometas e de as trazer para a Terra. A sonda recolheu também amostras da poeira interestelar que, protegidas no interior de uma cápsula, foram libertadas para a Terra em 2006. Com o auxílio de pára-quedas, a cápsula aterrou no deserto de Utah, nos Estados Unidos, para que as amostras fossem analisadas em detalhe pelos cientistas. Esta análise revelou a presença de um conjunto muito variado de moléculas que incluíam muitos dos blocos de construção da vida, confirmando que o Universo é rico em matéria orgânica. Este conhecimento conduziu à hipótese de que muitas das moléculas orgânicas fundamentais da vida poderiam ter sido trazidas pela poeira interestelar, asteróides e cometas que bombardearam a Terra, logo após a sua formação.
Quer fossem de origem extraterrestre ou originadas nas chaminés dos vulcões marinhos, a presença de moléculas orgânicas na Terra seria uma inevitabilidade, estando assim disponível para o início da vida um “menu” bem rico e variado de moléculas orgânicas. No entanto, a questão continua a colocar-se: Como se passou de um conjunto desorganizado de moléculas orgânicas para a vida nas suas variadas formas, que existe actualmente?
Ao tentar resolver esta questão, os cientistas depararam-se com um paradoxo. Para que a vida exista são necessários os ácidos nucleicos que possuem a informação para a produção das proteínas. No entanto, sem as proteínas, os ácidos nucleicos não conseguem passar essa informação nem se replicarem. Ou seja, não podem existir proteínas sem ácidos nucleicos, nem replicação dos ácidos nucleicos sem proteínas. Deste modo, a questão fundamental da origem da vida seria semelhante à questão do que é que apareceu primeiro, o ovo ou a galinha? Não é provável que ácidos nucleicos e proteínas tenham aparecido ao mesmo tempo independentemente uns dos outros.A resposta a esta questão parece residir num tipo de ácido nucleico designado de RNA (ácido ribonucleico). Em 1989 foi atribuído o prémio Nobel da química a dois investigadores, Tom Cech e Sidney Altman, pela descoberta das propriedades catalíticas do RNA. Um catalisador é uma molécula ou átomo que acelera determinada reacção química sem ser alterado no processo. Os catalisadores são muito importantes nos seres vivos, pois condicionam todas as reacções químicas que acontecem numa célula. Sem catalisadores biológicos não existe vida, e, até à década de 80, acreditava-se que essa função era exclusiva das proteínas (denominadas de enzimas). Tom Cech e Sidney Altman descobriram independentemente, que certas moléculas de RNA a que chamaram de ribozimas, poderiam desempenhar a função de catalisadores biológicos. A descoberta das ribozimas veio colocar a possibilidade das moléculas de RNA terem tido um papel fundamental na origem da vida. Deste modo, terá existido um “mundo RNA” primordial, onde a molécula de RNA desempenharia um papel fundamental de armazenamento de informação e catálise de reacções químicas específicas.
Actualmente, é possível construir uma via evolutiva hipotética, mas plausível, desde o mundo pré-biótico até à primeira forma de vida. A primeira etapa iniciou-se com a criação da sopa pré-biótica, incluindo nucleótidos, a partir de componentes da atmosfera da terra primitiva. Numa segunda etapa teve início a produção de pequenas moléculas de RNA em sequências ao acaso, seguindo-se a replicação selectiva e auto-multiplicação de segmentos catalíticos de RNA e a síntese de pequenas proteínas, catalisadas pelo RNA. Com o passar do tempo houve um aumento do papel das proteínas na replicação do RNA e co-evolução do RNA e proteínas. Desenvolveu-se um sistema primitivo de transcrição, com genoma de RNA e catálise RNA-proteínas. Posteriormente, o RNA genómico começou a ser copiado para DNA e o genoma de DNA, passou a ser traduzido por um complexo RNA-proteínas (ribossoma). Estes sistemas foram-se tornando cada vez mais sofisticados, permitindo a formação de células muito simples. Estima-se que essas células mais antigas sejam as arqueobactérias que podem ainda hoje ser encontradas em ambientes hostis aos demais organismos. As arqueobactérias prevalecem actualmente em ambientes extremos como fontes de água quente, lagos ou mares muito salinos, pântanos (onde produzem metano) e ambientes ricos em gás sulfídrico.
O facto talvez mais extraordinário da biologia é que a imensa variedade de seres vivos partilha o mesmo antepassado comum. Todos os seres vivos conhecidos utilizam o mesmo código genético (com pequenas variações em seres mais primitivos) e os mesmos “blocos de construção” (nucleótidos, aminoácidos e açúcares) para a formação das moléculas biológicas complexas (ácidos nucleicos, proteínas). O uso comum do DNA e do código genético indicam que uma única célula primitiva terá dado origem a toda a imensa variedade de seres vivos que actualmente habita a Terra. A diversidade de formas de vida que existe actualmente foi sendo gerada por processos evolutivos que actuaram ao longo de milhões de anos. Para que a evolução ocorresse foi fundamental que os sistemas replicativos da informação genética não fossem perfeitos, de modo a produzir a variação desses sistemas. A competição pelos recursos disponíveis entre os diferentes sistemas permitiu que ocorresse o processo de evolução por selecção natural. Deste modo, ao nível molecular, ter-se-ão aplicado os mesmos princípios da teoria da evolução que se aplicam aos organismos.
Em Julho de 2002, um artigo publicado numa revista científica - “Nature”, dava conta do primeiro vírus produzido por métodos químicos. Utilizando como “receita” a sequência genética disponível do vírus da poliomielite e uma série de “ingredientes” químicos, foi possível fabricar este vírus por métodos não biológicos. Os vírus são entidades que possuem o seu próprio material genético (DNA ou RNA) rodeado por uma estrutura protectora de proteína e, em alguns casos, de uma membrana lipídica semelhante às membranas celulares das células. Contudo, necessitam de uma entidade biológica – a célula, para se reproduzirem, e não têm qualquer actividade metabólica quando fora da célula hospedeira. Por essa razão, os biólogos não os consideram seres vivos. Mesmo quando comparados com os organismos vivos como as bactérias, plantas ou animais, os vírus são ainda muito rudimentares. E, apesar do alarme causado pela possibilidade da construção de vírus ser aproveitada pelo bioterrorismo, continuamos ainda muito longe de criar vida partindo apenas de reacções químicas.
(In Diário Insular)

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