terça-feira, setembro 22, 2009

Valor científico dos Açores está provado


Os estudos da biodiversidade dos Açores têm vindo a provar que as ilhas são um laboratório natural para estudar a evolução das espécies e a dinâmica e a ecologia dos espaços insulares. Em entrevista ao DI, Paulo Borges, que lidera estudos sobre a biodiversidade açoriana na Universidade dos Açores, fala sobre o momento actual da Ciência nas ilhas.
A comunidade científica açoriana quer demonstrar que Charles Darwin estava errado quando disse que nada havia de interesse na biodiversidade açoriana.
Sem dúvida. Nas últimas décadas, os resultados da investigação nos Açores, nomeadamente na área da biodiversidade – quer no Departamento de Biologia em São Miguel, quer no Departamento de Oceanografia e Pescas, no Faial, quer no Departamento de Ciências Agrárias, particularmente com o Grupo de Estudo da Biodiversidade dos Açores, na Terceira -, demonstram que existe uma riqueza enorme de formas de vida únicas no arquipélago. E estas têm uma grande importância no funcionamento dos ecossistemas dos Açores, como, por exemplo, ficou demonstrado com a crise da água na ilha Terceira, onde se mostrou que as florestas naturais e toda a sua estrutura é essencial para haver água de qualidade para os angrenses. Portanto, na recta final do século XX, todos esses estudos vieram demonstrar a importância dos Açores no ‘hotspot’ da biodiversidade que inclui a Madeira e as Canárias e os Açores.
Na sua opinião, porque o pai da Teoria da Evolução das Espécies não se interessou pelos Açores, quando por aqui passou?
Ao visitar as ilhas, Darwin não encontrou animais de grande porte. Portanto, ao não encontrar aves endémicas nem o morcego endémico, por exemplo, e ao não encontrar mamíferos endémicos, o naturalista – que esteve muito pouco tempo na Terceira – acabou por decretar o desinteresse científico da ilha. Obviamente, naquela altura, Darwin não teve nem a capacidade nem o tempo necessários para investigar os insectos, os caracóis e outras espécies, como aconteceu na sua passagem pelas Galápagos ou no Havai.
Com essa declaração, Darwin afastou os cientistas do arquipélago?
No início, acho que sim. Porque, nessa época, existiram estudos fantásticos na Madeira e nas Canárias, sobretudo realizados por investigadores ingleses e nórdicos. E não assistimos a esses estudos nos Açores. Na Região, a comunidade científica debruça-se sobre a biodiversidade das ilhas já no século XX, nomeadamente através de expedições de universidades estrangeiras e, mais tarde, pela Universidade dos Açores. E é com a universidade açoriana que ocorre um ‘boom’ de estudos e conhecimentos sobre o arquipélago. Por exemplo, só em caracóis nos Açores, cerca de 70 por cento são endémicos. E esse conhecimento é recente. Em artrópodes, só em 1990, é que começou a descobrir as 20 espécies endémicas das grutas. Portanto, os Açores andaram afastados da atenção da comunidade científica. Não totalmente, mas os estudos cá realizados foram residuais.
Por que a comunidade internacional não quis estudar o arquipélago, que é hoje reconhecido como um laboratório natural situado no meio do Atlântico?
Por um lado, os Açores não estiveram no centro das rotas aéreas entre a Europa e a América. Muitos investigadores passavam por Santa Maria – resultando daí o notável trabalho de Alberto Teixeira Pombo, que conseguiu desenvolver contactos interesses com os cientistas que por ali passavam – mas eram visitas pontuais. A Madeira, pelo contrário, estava na rota do turismo inglês; e as Canárias na rota do turismo do Norte da Europa. Além disso, as duas regiões beneficiaram da publicidade que Darwin lhes fez. Daí serem alvo de vários estudos. No fundo, as rotas passavam-nos ao lado. Por outro lado, algumas das descobertas que se realizaram, implicaram meios tecnológicos avançados, que há altura não existiam. Veja-se os estudos feitos no fundo marinho ou na copa das árvores dos Açores. Ou seja, os Açores acabam por mostrar o seu valor científico após ter sido possível realizar vários investimentos que resultaram num acumular de tecnologia e conhecimentos sobre a biodiversidade local.
O trabalho dos cientistas açorianos tem tido eco nas comemorações mundiais em curso sobre Charles Darwin?
Sim. Vários investigadores da Universidade dos Açores têm participado em vários eventos internacionais dedicados a Darwin. Um dos nossos alunos vai estar em Minorca. Outros, em Março, estiveram em Leipzig, a apresentar estudos sobre os Açores. Tivemos outros investigadores no México. E, de 19 a 23 de Setembro, o professor Frias Martins reúne investigadores locais com investigadores internacionais para demonstrar o valor dos Açores como laboratório de investigação na área da Biologia.
Diz-me que o ‘boom’ da investigação científica açoriana ocorre com a Universidade dos Açores. Neste momento, qual o ponto de situação no estudo da biodiversidade açoriana?
Os Açores, neste momento, em muitas áreas, estão no mesmo patamar de muitas outras áreas do planeta, nomeadamente Canárias, Norte da Europa, Madeira, Galápagos, Havai. Ou seja, em termos de estrutura e de cientistas, já atingimos um nível qualitativo idêntico a esses locais. Por exemplo, se consultar muita literatura científica recente, encontrará muitos trabalhos que comparam os Açores a outros arquipélagos. E noutros aspectos estamos na vanguarda. Por exemplo, o Portal da Biodiversidade dos Açores é, neste momento, único nos arquipélagos semelhantes. Apesar do projecto, conceptualmente, ter sido criado e desenvolvido nas Canárias, nós passamos da simples colocação de dados para a comunidade científica para a divulgação ao grande público. O sítio, neste momento, tem mais de duas mil visitas diárias, tem recursos enormes e recebe visitas de cientistas, de escolas, de cidadãos interessados. Além de cooperar com várias instituições governativas. Portanto, atingimos com este projecto uma dimensão educativa, científica, popular e de apoio governamental ao nível de gestão do Ambiente.
Portanto, toda a exposição conseguida com esse projecto é da responsabilidade da Universidade dos Açores, muitas vezes tida como uma instituição de segunda linha…
A Universidade dos Açores é responsável pelos conteúdos e pela investigação que os originam. Mas, não nos podemos esquecer, que sem o apoio incondicional de várias entidades governativas, não era possível a concretização quer deste projecto quer dos estudos científicos que vão sendo desenvolvidos. Por isso só, a academia não tem capacidade para realizar investigação. Sem o esforço único – que não é comparável ao que acontece na Madeira ou nas Canárias – que as entidades governativas regionais têm desenvolvido, não tínhamos chegado a este patamar.
Que leitura faz desses apoios?
Entendo-os como parte de uma estratégia concertada de promoção turística dos Açores como zonas sustentáveis da natureza. Têm vindo a ser aprovados os parques de ilha, por exemplo, que mais não são do que formas de promover as ilhas como belezas naturais, como zonas ‘wilderness’, em oposição ao turismo madeirense que não comporta a vertente de natureza selvagem, digamos assim.
Qual o grau de conhecimento nos Açores da sua biodiversidade?
Depende dos grupos taxionómicos. Por exemplo, ao nível das plantas, sabemos quase 90 por cento; os artrópodes, saberemos 60 a 70 por cento…
Qual a área menos conhecida?
Os insectos. Onde existem vários grupos mal estudados. Embora nos últimos cinco anos já se tenha aumentado o conhecimento que publicamos em livro em 2005.
É possível que se venham a conhecer espécies novas no arquipélago?
Sim. Ainda recentemente foram publicados artigos revelando dez novas espécies de aranhas e oito novas espécies de escaravelhos. Ao nível das plantas e dos musgos, há sempre descobertas a acontecerem. Tudo isto deriva do facto de existir uma equipa em trabalho contínuo, em investigação permanente. E, ao mesmo tempo que se descobrem novas espécies, descobrem-se também os factores que as põem em risco.
Qual a principal ameaça à biodiversidade açoriana?
Pelo que conhecemos, o perigo maior resulta das espécies invasoras. Felizmente, o Governo Regional tem um projecto em curso de combate às espécies invasoras (incenso, conteira, hortênsia, etc.) em zonas críticas.
O homem é ou será um perigo para a biodiversidade açoriana? Numa Região que pretende explorar o turismo de natureza…
Acho que não. Aliás, felizmente, o clima dos Açores está a protegê-lo de um turismo de massas. Parece-me que, nesse aspecto, a ilha que possa correr mais riscos é São Miguel…
As restantes não podem vir a sofrer com uma intensificação turística?
Não me parece, porque não me parece viável que essa intensificação ocorra. O tipo de turista que visita os Açores, se for bem coordenado, não representará qualquer perigo para a biodiversidade do arquipélago. Por exemplo, nas Galápagos, que têm um turismo mais agressivo, as autoridades locais conseguem minimizar essas presenças.
Dos estudos que tem realizado, têm sido feitas descobertas que, de certa forma, ponham em causa algumas das ideias que se têm sobre os Açores? Dou-lhe o exemplo da declaração de Eduardo Dias, professor da academia açoriana, que revela que o arquipélago vive uma segunda Primavera no Outono…
Sim. Há vários exemplos. Relativamente a esse que me dá, comprovamos que, ao nível dos musgos, existem dois picos de crescimento: na Primavera e entre Setembro e Outubro, no Outono. Há como que duas zonas de alegria e dinâmica das florestas derivadas do nosso clima. A nível dos artrópodes, há espécies – caso das moscas – que, no Outono, se desenvolvem também. Nas térmitas, o período de enxameamento vai de Maio a Outubro. Portanto, muitos dos estudos provam que as nossas condições ecológicas permitem novidades, nomeadamente ao nível da fisiologia dos indivíduos. Além disso, o facto de os Açores serem um arquipélago com diferentes idades de surgimento, é-nos possível propor novas teorias sobre a evolução e a colonização dos organismos dos Açores. Ou seja, estas ilhas, pelas suas características, são muito interessantes para estudar Evolução, Ecologia, Conservação da Natureza, Dinâmica das Espécies Invasoras, etc.
A comunidade científica internacional tem demonstrado interesse nessas matérias?
Sim. Muito. Recentemente, tivemos quatro projectos da Fundação da Ciência e Tecnologia aprovados com questões ligadas à problemática das ilhas, nomeadamente ecológicas e evolutivas. E foram projectos considerados pelo painel de avaliadores internacionais de grande importância.
Que mais-valias se retiram desses estudos, nomeadamente para o cidadão comum?
Estamos aqui a falar de investigação pura, que tem impacto sobretudo no avanço da Ciência internacional. Para o cidadão comum pode não haver impacto directo. Mas a Região, num primeiro momento, pode beneficiar do interesse de mais cientistas estrangeiros, que ao virem para os Açores significam rendimento, nomeadamente ao nível do turismo científico. Recentemente, por exemplo, tivemos cá cinco alunos da Universidade de Oxford a fazerem investigação. O que demonstra que o meio científico internacional vê potencial nestas ilhas, quando poderia centrar atenção noutras zonas do globo.
Percebo das suas palavras que a Universidade dos Açores se encontra incluída nas redes científicas internacionais, granjeando aí sucesso. Contudo, dentro de portas, a academia continua a não ser vista como um pólo de excelência. Porquê?
Falta as gerações suficientes de estudantes açorianos que, ao estudarem aqui, percebam e reflictam para o exterior essa importância. Esta academia tem 30 anos. E a dimensão científica e de investigação da Universidade dos Açores tem menos de 20 anos. Ou seja, ainda não houve tempo suficiente para a universidade ganhar, digamos assim, estatuto internamente e garantir à Região um conjunto vasto de quadros.
Como é possível, em pouco mais de dez anos, o conhecimento gerado na Universidade dos Açores ter aumentado tanto?
Há dez anos atrás, o número de doutorados nesta universidade era diminuto. Eu e os meus colegas, entramos aqui na década de 80/90 e fomos tirar os nossos doutoramentos no estrangeiro, ligando-nos a equipas internacionais de vanguarda. E aí, começamos a colocar os Açores no mapa da comunidade científica. Depois, é o efeito da bola de neve. A capacidade científica que leva tempo a formar, no caso dos Açores, encontra-se no auge neste momento, porque esses doutorados estão na melhor fase da sua produção. Daí este crescimento.
A Universidade dos Açores, na sua opinião, tem condições para produzir fornadas de doutorados que mantenham este ritmo na investigação local?
Acho que sim. No meu grupo, temos cinco alunos de doutoramento. Outros grupos têm também alunos desse nível. E esses alunos vão trabalhar na Região ou fora dela, potenciando a nossa investigação. Reconheço que para a população em geral, estas coisas não são visíveis, até porque, se calhar, a economia açoriana é muito baseada na agro-pecuária e a investigação de ponta da Universidade dos Açores não é muito nessa área, mas sim nos fundos submarinos, na climatologia ou na biotecnologia, assim como na biodiversidade, vocacionada para o eco-turismo e o turismo científico. Ou seja, enquanto a população em geral luta nos sectores económicos tradicionais, a Universidade dos Açores trabalha a nível da investigação científica pura e dura, que terá impacto na Região em outras vertentes.
A produção científica da Universidade dos Açores poderá alavancar outro patamar económico regional, centrado, por exemplo, no conhecimento?
Acho que não será possível sustentar um sector com grande impacto, por exemplo, ao nível do PIB. Mas será possível potenciar um impacto indirecto, nomeadamente ao nível da visibilidade dos Açores no exterior, que poderá atrair investigadores e turistas científicos. Agora, tenho dúvidas que isso signifique um pilar económico como, por exemplo, a Agricultura.
Na sua opinião, qual é o próximo passo que a Universidade dos Açores deve dar em termos de investigação?
Acho que agora é altura de dar tempo para que a Universidade dos Açores possa alcançar um patamar idêntico ao de outras academias nacionais, europeias e internacionais. Parece-me que esse é o caminho. A não ser que se decida investir fortemente na criação de centros de excelência, capazes de atrair investigadores de renome…
Acha que os Açores têm condições para consolidar esses centros de excelência?
Por que não? Recentemente foi criado, no DOP, um centro de observação do mar, que é um espaço de excelência. É um exemplo de que houve um interesse político imediato e que resultou num investimento nesse sentido. Há outras áreas onde isso pode acontecer. Por exemplo, na Terceira, podemos conseguir um grupo de excelência ao nível mundial para o estudo da ecologia e biodiversidade das ilhas. Estamos a trabalhar nesse sentido. Se conseguirmos continuar a cativar os orçamentos necessários, poderemos alcançar esse objectivo dentro de alguns anos. No entanto, reconheço que a nossa área de actividade não terá impactos económicos como, por exemplo, o centro de observação e investigação do mar, criado no DOP.
Mas podem produzir conhecimento fundamental, por exemplo, para a gestão do território?
Claro. Temos vindo a produzir investigação que auxilia os decisores. Lideramos o combate às térmitas, orientamos um mestrado de Educação Ambiental e promovemos o Portal da Biodiversidade. Ou seja, participamos em projectos que, no fundo, contribuem para a Região em termos concretos. Penso, assim, que estamos no caminho certo para demonstrar que os Açores têm valor como laboratório natural, algo que Darwin não reconheceu.
Os açorianos estão despertos e sensíveis à biodiversidade que os rodeia?
Os mais novos, sim. Os mais velhos, ainda continuam agarrados a alguns mitos ou ideias antigas. Aliás, prova disso, é a Região continuar a ostentar como símbolo uma planta invasora, a hortênsia. Quando temos a azorina, uma planta lindíssima e que é endémica. Mas, aos poucos, os açorianos vão despertando para estas temáticas. E, nesse aspecto, as escolas têm vindo a desenvolver um excelente trabalho na divulgação e promoção da biodiversidade insular.
Em termos de investigação científica, daqui a uma década, em que patamar deve estar a Universidade dos Açores?
Gostaria que, daqui a dez anos, tivéssemos capacidade para, por exemplo, publicar artigos científicos em revistas de grande dimensão, caso da Nature ou da Science. Neste momento, publicamos em revistas que não têm a dimensão de exposição destas.
Por que ainda não chegaram a esse patamar?
Já enviamos trabalhos para essas revistas, mas eles não passaram nas comissões de análise. Publicar nessas revistas implica ter uma experiência e um conjunto de dados acumulados de muitos anos para se descobrir detalhes e pormenores científicos únicos e inovadores em determinadas áreas. A nossa investigação ainda não atingiu essa dimensão temporal.

(in Diário Insular)

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