domingo, março 06, 2011

Via Dolorosa

Armando Mendes (Opinião)


Tem sido uma autêntica via dolorosa o processo que começou com a denúncia da contaminação da ilha Terceira com hidrocarbonetos provenientes da Base das Lajes e que há de culminar com a descontaminação, embora a procissão ainda vá no adro e os santos pesem como chumbo.
Em 2008, um cidadão norte-americano teve a amabilidade de informar-me sobre a situação ambiental na ilha Terceira derivada da Base das Lajes. O que me explicou num jantar na Praia da Vitória aproximava-se de um filme de terror.
Para provar tudo o que acabava de me transmitir, o dito cidadão entregou-me, depois do café, um cartão com um endereço internet, informando que ali poderia encontrar um excelente estudo de 2005 sobre contaminação e poluição de solos, subsolos e aquíferos na ilha Terceira e que esse estudo também resumia estudos anteriores, permitindo, assim, uma boa perspetiva histórica da evolução do problema.
Nessa mesma noite, até altas horas da madrugada, li o Final Hydrogeological Study Report for Lajes Field, Azores, Portugal, da empresa CH2MHILL e fiquei perturbado. Não apenas pela brutalidade do que ali estava escrito e comprovado por análises (na medida em que consegui entender), como também pela incapacidade científica de interpretar dados que para mim eram demasiado técnicos, e ainda porque percebi desde logo que o problema, além de muito grave, era antigo e alastrava ao longo das décadas sem que alguém se preocupasse em colocar um travão no processo de contaminação e poluição da minha ilha com elementos de extrema gravidade.

DESCODIFICAR E DIVULGAR
A opção lógica para perceber o estudo da CH2MHILL era recorrer à Universidade dos Açores e foi isso que fiz. Félix Rodrigues, Cota Rodrigues, João Barcelos, João Madruga e Jorge Pinheiro foram alguns dos cientistas que mais colaboraram na descodificação do estudo em causa, nuns casos interpretando análises e descrições; noutros comparando dados com observações e estudos próprios ou com a bibliografia pertinente. Após este trabalho de descodificação, os dados transformados em informação estavam prontos para a opinião pública.
Coube-me, assim, o privilégio de divulgar em primeira mão o estudo da CH2MHILL. Foi-me possível divulgar os dados em toda a região, no espaço continental português e no estrangeiro, conforme se pode comprovar por uma simples consulta à internet. No meu trabalho estiveram sempre presentes duas preocupações. Por um lado, informar; por outro, criar as condições objetivas, através de um caudal de informação correta e isenta, para que a descontaminação e a despoluição surgissem no horizonte imediato como uma necessidade incontornável.
Para que o Governo Regional se pudesse pronunciar sobre a situação, facultei um exemplar do Final Hydrogeological Study Report for Lajes Field, Azores, Portugal ao secretário regional com responsabilidades nas relações externas da Região (Lajes), que previamente me havia comunicado o total desconhecimento da situação e do estudo, bem como de qualquer trabalho sobre contaminação com origem na Base das Lajes.
Pensava eu que a partir deste momento poderia descansar, porque a minha Região Autónoma, através dos seus órgãos de governo próprio, tomaria conta do assunto, exigindo de imediato os trabalhos de descontaminação e despoluição que se impunham com base nos estudos e relatórios mandados elaborar pelos próprios contaminadores e poluidores. Enganei-me. A partir daqui começou o pesadelo que ainda perdura.

DESINFORMAÇÃO
Desde as primeiras declarações públicas que percebi uma sintonia perfeita entre as posições governamentais açorianas e a esforçada então cônsul dos EUA em Ponta Delgada (com militares e políticos de Lisboa a alinharam mais ou menos pelo mesmo diapasão). O objetivo central foi desde o início construir um discurso de desinformação, em larga medida "engolido" por muita comunicação social, apontado para o acessório e tentando iludir o essencial, que sempre foi o largo espectro de contaminação com hidrocarbonetos desde o solo ao aquífero basal da ilha Terceira.
Postos perante estudos de enorme gravidade, que indicavam claramente e comprovadamente um cenário de contaminação e poluição em muito larga escala e em mais de trinta sítios e com as bombas de captação para abastecimento público mergulhadas em aquíferos contaminados - sendo certo que muitos dos elementos contaminantes nem são analisados na água da torneira, além de que entre os analisados alguns já estão fora dos parâmetros -, decisores políticos envolvidos no processo agiram com enorme irresponsabilidade tentando iludir a opinião pública e chutar o problema para a frente através da encomenda de um estudo ao LNEC-Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Em 2011 e após muitas peripécias, lá o LNEC veio à Praia da Vitória apresentar o seu estudo, que no essencial se sintetiza em três notas: pouca extensão geográfica; boa opção na diversidade de análise das amostras recolhidas; e conclusões finais de tal maneira embrulhadas que não seriam admitidas numa tese de fim de licenciatura (seriam remetidas ao autor para reformular, tendo em atenção os dados recolhidos no terreno). Foi a partir destas conclusões embrulhadas que o governante do costume veio cantar vitória, novamente em aparente conluio com o consulado dos EUA em Ponta Delgada, que no mesmo instante estava a emitir um comunicado também cantando vitória.

DADOS QUE FALAM
Afinal, a vitória transformou-se em derrota. Aliás, o discurso de vitória na célebre apresentação do LNEC na Praia da Vitória só foi possível porque só nesse momento é que foram entregues aos jornalistas cópias em CD do estudo, o que significa que nenhum jornalista presente na sala conhecia o dito (que era conhecido pelo consulado dos EUA em Ponta Delgada). Lido o estudo e interpretado por especialistas, conclui-se que onde pesquisou, o LNEC encontrou contaminação e poluição da pesada, que vai desde o solo ao aquífero basal.
Queimar mais tempo é ainda mais criminoso. Há tecnologia adequada. O caminho só pode ser descontaminar já e com supervisão independente.

Impensável
Já depois de escrito o texto da página anterior, fui surpreendido com uma conferência de Imprensa do Consulado dos Estados Unidos em Ponta Delgada, realizada na ilha Terceira, sobre um "Programa de Ambiente - Overall Briefing" destinado, na parte da "Remediação", a identificar medidas para limpar solos e realizado, nessa parte, assumidamente, na sequência do recente relatório do LNEC sobre a contaminação com origem em atividades relacionadas com a Base das Lajes.
Se até agora tinha assistido não a um filme de terror, mas a um seriado (porque em vários episódios) todo ele dedicado ao terror, agora a coisa agravou-se por três razões. Primeiro porque ficámos a saber que os norte-americanos se aproveitaram do escasso regional de mandar fazer um estudo minimalista pelo LNEC que identificou duas áreas críticas contra as 34 já identificadas por estudos anteriores e vai daí toca de engendrar uma descontaminação para essas duas áreas; segundo, porque os norte-americanos se dão ao luxo de afirmar que a descontaminação incidirá apenas sobre áreas que segundo eles tenham potencial para constituir perigo para a saúde, esquecendo o perigo geral para o ambiente e a obrigação moral e legal de descontaminar, e terceiro porque continuam alegremente (e impunemente) a negar que o aquífero basal esteja contaminado, o que significa que não estará nos seus planos nem descontamina-lo, nem sujeita-lo à monitorização que se exige e que deverá ocorrer durante um período de segurança de meio século. Ou seja, a Terceira tem um sério problema pela frente.
Fora de qualificação - porque me fenecem os adjetivos - ficam a convocação de uma conferência de Imprensa em território português por parte de uma representação de negócios estrangeira e ainda por cima para falar de contaminação do nosso território, e a presença nessa conferência, no público, de altos representantes dos poderes local, regional e militar português. Ainda mais inqualificável é o facto de o cônsul dos Estados Unidos em Ponta Delgada ter aproveitado o momento para entalar as autoridades locais, nacionais e militares portuguesas ali representadas, afirmando, com voz firme e sem avermelhar, que de todos os relatórios de contaminação - e já lá vão muitos, sendo o principal o que ficou concluído em 2004 e está datado de fevereiro de 2005 - foi dado conhecimento a essas autoridades. A ser mentira, a ver vamos quem os tem no sítio; a ser verdade, o caso não é apenas político, mas também de Ministério Público - se é que o Ministério Público tem tempo para se preocupar com tais minudências.
Ficou bem claro na dita conferência de Imprensa que os norte-americanos se preparam para fazer a descontaminação que muito bem entenderem, por meios próprios e com validação do Comando Europeu dos EUA sedeado na Alemanha. Fica também claro, por contrário senso, que não haverá envolvimento português no processo, muito menos ao nível da fiscalização. Ora bem, este processo, quanto a mim, é contrário ao que teria que ser feito. A saber, os estudos para descontaminação deveriam ser realizados sob responsabilidade portuguesa; todo o processo de descontaminação deveria ser posto a concurso sob responsabilidade portuguesa; a fiscalização deveria ser portuguesa - obviamente da responsabilidade da Universidade dos Açores. E a fatura, essa sim, deveria ser paga pelos norte-americanos, a começar pela fatura do estudo do LNEC, que custo 607 mil euros à Região.
Pelo caminho que as coisas estão a tomar, o que me parece é que temos panos para mangas. As nossas autoridades vão continuar sentadas a ouvir as ordens norte-americanas e a ilha vai continuar contaminada e poluída. E quem estiver mal pode sempre emigrar. AM

(In DI XL)