A Matemática é um jogo
Jorge Picado, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, esteve na Terceira, a convite da Universidade dos Açores, para divulgar a matemática aos alunos do ensino secundário. DI falou com o professor sobre a situação actual da disciplina em Portugal.
Esteve nas três escolas secundárias da ilha Terceira, para ensinar os estudantes a calcularem os números suplementares de códigos de barras e bilhetes de identidade, entre outros. Já participou em inúmeras palestras deste género, onde se recorre à matemática do dia-a-dia como exemplo.
Que importância é que este tipo de iniciativas tem para agarrar os jovens à matemática?
A experiência que eu tenho é muito positiva. Em Coimbra, sempre houve muita tradição de fazer palestras destas e programas destes, desde há muitos anos, com o apoio da Sociedade Portuguesa de Matemática. Corremos as escolas todas ali na região. Ultimamente, tem-se feito um esforço muito grande, porque é um bom meio de tentar atrair alunos para os nossos cursos, nas faculdades, e é isso que o Departamento de Matemática da Universidade dos Açores também pretende fazer. É uma boa oportunidade. E a experiência é positiva, porque se os termos forem bem escolhidos, os alunos são atraídos para a matemática. É uma maneira de lhes mostrarmos coisas que, hoje em dia, infelizmente, nos currículos no ensino secundário, quanto a mim estão a ficar cada vez mais pobres. E isto é uma maneira de trazermos um pouco mais riqueza de aos estudantes do que é que há para além das aulas. Há muita matemática.
Estes exemplos do quotidiano são uma boa forma de captar a atenção dos jovens?
São. Eles mostram-se mais interessados?Sim, isso é óbvio, mas tudo depende da maneira como se apresentam as coisas. Tenho feito algumas palestras com coisas um pouco menos óbvias para eles, coisas que eles não conhecem, nem nunca utilizaram, mas se forem bem apresentadas, com uma parte lúdica, a experiência é muito boa. Por exemplo, tenho feito apresentações sobre a ligação dos nós e da matemática e fazem-se umas coisas extremamente engraçadas. Mas aí a matemática que está por trás é muito abstracta e eu tento apresentar um bocadinho desse lado abstracto e eles reagem bem, porque depois há coisas que se podem fazer muito engraçadas como os jogos. Aliás toda a matemática é um jogo. Portanto por esse ponto de vista conseguimos sempre atrair os alunos.
Qual é o principal objectivo deste tipo de palestras? Cativar os jovens para ingressarem numa profissão relacionada com a matemática ou desmistificar a ideia negativa que os jovens têm da disciplina?
Ambos. Tentar não afastar mais os estudantes, porque é uma questão cultural. Criaram-se alguns hábitos na sociedade. E eu acho que é uma das dificuldades dos professores nas nossas escolas. Os alunos vêm para a escola com muitos maus hábitos, falta de motivação, de estudo, de não quererem trabalhar… E com estas iniciativas tentamos motivá-los um pouco mais. É também um objectivo de nós, universidades… da Universidade dos Açores, da Universidade de Coimbra e de todas as outras, que têm feito um grande esforço, porque é um problema grave para o país. O número de alunos, nos últimos anos, a entrar nas ciências, já não digo só matemáticas, nas engenharias, que é muito importante, tem diminuído muito, por causa da matemática, porque as pessoas querem fugir aos exames de matemática. E isso é um problema futuro para o país, acho eu. E há falta de informação. Há muitos miúdos que não fazem ideia das grandes oportunidades de emprego que há na ciência e nas engenharias, ainda por cima num tempo de crise como este. Eu dou cursos no departamento de Engenharia e estou farto de aconselhar alunos a apostar na matemática, se gostam. Em Coimbra, os alunos antes de acabarem o curso, já têm empresas atrás deles. É uma mudança de mentalidades que tem evoluído muito devagar, mas que está a evoluir por parte dos próprios empregadores. Está, felizmente, a cair em desuso as pessoas arranjarem empregos com cunhas. As empresas têm a preocupação de procurar pessoas mais bem preparadas e, portanto, vão aos sítios onde eles estão a ser bem preparados. Nos últimos dois, três anos, no nosso departamento de matemática, temos licenciado muitos matemáticos, que estão hoje em dia a trabalhar em empresas. Trago comigo uns questionários que fizemos no ano passado a várias empresas, para que nos dissessem quantos matemáticos têm lá a trabalhar e qual a opinião deles sobre os empregados. E as respostas são muito positivas. Num dos casos, dizem-nos que os matemáticos, como vêm com uma preparação de raciocínio lógico e mais abstracto estão preparados para se adaptar melhor a este mundo, que está constantemente a mudar. Eles dizem que os matemáticos têm já experiência, capacidade de adaptação e criativa e ao mesmo tempo de grande rigor e organização.
Porque é que se encara a matemática como um “bicho-de-sete-cabeças” em Portugal?
Não é só em Portugal. É em todo o mundo. Eu trabalhei muitos anos nas Olimpíadas de Matemática e participei nas olimpíadas internacionais, que as pessoas não fazem ideia do que é. São milhares de estudantes de todo o mundo e o júri tem um professor de cada país. Eu estava a representar Portugal. E a queixa de todos é geral. As conversas são sempre as mesmas. A geometria desapareceu de todos os currículos. Já ninguém sabe geometria.
Toda a gente se queixa em todo o mundo. O que é que poderá ter contribuído para esta mudança?
É complicado. Estamos numa sociedade muito facilitista. Com os meus filhos, vou-me apercebendo disso na prática e vou tentando contrariar, mas é difícil da maneira como a sociedade está. Então, a influência da televisão acho que é uma coisa impressionante. Há esta coisa facilitista, tudo tem de ser obtido rápido, para os jovens tem de ser tudo feito no momento. Tudo o que dê um bocadinho de trabalho, tudo o que obrigue a estar sentado numa secretária umas horas, dá muito trabalho. E não há cultivo do estudo. Eu digo aos melhores alunos que lá te temos, que querem seguir matemática e investigação: - “a vossa vida é estudar, eu estudo toda a vida”. As pessoas têm de gostar de estudar. Estar sentado à secretária é tão bom. Aprender coisas novas…Mas dá trabalho, é preciso esforço. A matemática é simples, mas só se a quisermos aprofundar. Por exemplo, aquilo que eu mostrei na palestra: se eu quiser montar uma empresa para vender soluções daquelas, tenho de aprofundar aquilo ao máximo e usar o máximo de artilharia matemática para os métodos serem melhor, senão aparece um concorrente meu que arranja soluções melhores. Portanto eu tenho de ter teoremas por trás que digam que o meu método é o melhor, que é eficiente a 100%.
A introdução da calculadora no dia-a-dia dos estudantes poderá ter contribuído, de alguma forma, para o aparecimento dessa cultura do facilitismo?
Muito. É preciso haver mais estímulo nas escolas?No primeiro semestre deste ano, eu dei uma disciplina ao primeiro ano de engenharia informática, que é um dos cursos maiores da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. São quase 250 alunos na disciplina. Aparece lá uma minoria de alunos bem preparados, mas a grande maioria vem com o vício da calculadora e não sabem fazer uma conta. Eu tive de mudar o programa na segunda semana de aulas, porque estava a “falar para o boneco”. Eles não sabiam dividir. Não sabiam o algoritmo da divisão. Tive lá alunos que pegavam no número maior e iam extraindo do maior o outro pequenino várias vezes e depois viam o que sobra no fim. E não eram um nem dois… E isto foi a calculadora que criou esses vícios todos. A calculadora é muito boa, eu também a utilizo todos os dias no computador, mas é muito boa “à posteriori”. Tem de haver primeiro um treino mental, senão uma pessoa não consegue pensar rapidamente nestas coisas.
O uso da calculadora está a entrar muito cedo no ensino?
No ensino básico eu acho que é um crime. Os meus filhos estão proibidos de a utilizar. Nunca usaram e felizmente eles nunca tiveram essa reacção. Aliás eles nem gostam. O meu filho mais velho gosta muito de matemática e ele diz que tem muito mais piada fazer as coisas de cabeça.O sistema de ensino em Portugal é o perfeito?Perfeito não é em lado nenhum. Não há nenhum país do mundo que tenha um sistema perfeito. Nem sei o que isso é.
Quais são as principais falhas?
Eu por acaso não gosto muito de falar de coisas genéricas sobre educação, porque rapidamente começo a dizer asneiras. Isso é o que eu vejo nas outras pessoas. Acho que se fala demais neste país de educação. Pessoas que não percebem do assunto falam demais e os especialistas acabam por se encolher. O sistema não é perfeito, mas evoluiu-se muito nestes trinta anos, depois do 25 de Abril. O país mudou muito e a educação mudou muito para melhor, de certeza. Eu sou da geração que apanhou pela primeira vez o ensino unificado. Aquilo que os alunos têm hoje na escola e aquilo que eu tinha no meu tempo não tem comparação. Os alunos hoje, se quiserem têm acesso a coisas que nós nunca tivemos. Eu entrei na universidade sem nunca ter ouvido uma palestra destas. E há o problema da massificação. O sistema de ensino antes do 25 de Abril tinha uma minoria de alunos e depois vai tudo para a escola. A escola não resolve isso numa geração, nem em duas. São coisas que outros países mais avançados demoraram muitos anos a resolver. É um problema complicado ter todos os alunos na escola. Não há receitas. É tentar cada um fazer o melhor. Agora há um problema central do ministério da Educação: programas mal feitos, por exemplo.
O professor devia ter liberdade para escolher a matéria que dão aos alunos?
Devia ter alguma. Tem de ter alguma. Há coisas com muito floreado, mas que têm pouco sumo. As coisas básicas e fundamentais têm de ser trabalhadas em matemática: a tabuada por exemplo. Há uma série de ginástica mental que tem de ser mais trabalhada, senão ninguém consegue avançar. E depois há as questões específicas da matemática, que tornam a coisa ainda mais complicada. A matemática é uma área cumulativa. Vai-se cimentando o conhecimento, um em cima de outro, mas tem de haver uma base. Na matemática não se pode inverter a ordem.
(in DI-Revista)
Etiquetas: Ensino, Ensino básico, Matemática, opinião
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