Quer tirar um Curso no Campus de Angra do Heroísmo
É sobretudo das mudanças no corpo que não gostam. No resto a ideia de estarem grávidas até agrada. Há "todo um contexto sociocultural" que ajuda a que seja assim nos Açores. Aqui o número de filhos com mães adolescentes ronda o dobro das taxas nacionais. Um estudo conclui agora que "a maternidade, mesmo precoce, surge como um projecto de vida aceitável e desejável para muitas destas jovens".
Sem nada para fazer, Carolina e Diana gastam a tarde em cigarros, cada uma sentada diante de uma chávena larga de cevada. A conversa gira à volta de piercings: quando souberam que estavam grávidas, ambas tiraram os brincos que tinham espalhado pelo corpo. Acreditavam que, se não o fizessem, o bebé viria com sinais nas mesmas zonas do corpo onde a mãe tivesse os piercings. Para prová-lo Diana pega no pequeno Samuel, de ano e meio, que arrasta um triciclo pela cozinha. O filho tem uma marca no sítio onde ela usava um pequeno brinco: exactamente no canto do nariz. Até uma simples nódoa na camisola da mãe pode provocar uma mancha no corpo do bebé, diz Diana, como se mãe e filho estivessem separados apenas por uma folha grossa de papel químico. "Não sabia?", pergunta, incrédula. Ambas moram pouco depois da vedação que isola a Base das Lajes do resto da ilha Terceira, nos Açores, num bairro que cresceu à margem dos americanos e simultaneamente à sua imagem. Em Santa Rita, na cidade da Praia da Vitória, as casas feitas de madeira podem fazer lembrar de soslaio um subúrbio americano, mas esta é uma das zonas mais pobres e problemáticas da ilha Terceira. Na casa onde habitam Carolina e Diana moram sete pessoas e apenas uma trabalha - os outros ou são menores ou vivem do Rendimento Social de Inserção. Em breve serão oito. Carolina tem 15 anos, está grávida de oito meses e apoia-se na experiência de Diana, a mulher do irmão mais velho, para criar a menina que vai nascer. "Ela não sabe fazer um biberão, não sabe a medida de leite nem a temperatura", reclama a cunhada, que, com 21 anos, é mãe de dois filhos (de ano e meio e seis anos). Diana fala muito depressa. Sabe que tem muito para contar. Teve até agora uma vida atribulada. Da primeira vez que engravidou, tinha a mesma idade da cunhada, mas por ser a mais velha de sete irmãos, de quem cuidava enquanto a mãe estava fora, não teve os receios de Carolina sobre não ser capaz de criar o filho. A mãe teve-a com 15 anos mas não aceitou que a filha seguisse o mesmo caminho. "Como também penou, devia ter-me apoiado", defende a filha. Em vez disso, quis obrigá-la a fazer um aborto. Grávida de dois meses, Diana teve de fugir de casa para poder ter a criança. "Cheguei a ir à polícia para lhes dizer que ela queria que eu fizesse um aborto." Uma realidade à parte
A mãe de Carolina também engravidou aos 15 anos. Nunca esperou que dos quatro filhos fosse a mais nova a engravidar. Custou-lhe ainda mais. Mostra várias fotografias de Carolina. Com os olhos amendoados, o longo cabelo preto a escorrer-lhe pela cara e o corpo fino de criança realçado pela roupa justa, era a filha mais bonita. Aquela em que depositava mais esperança. Fala dela como se a filha que pesava uns singelos 38 quilos e aquela sentada na mesa diante de si, com o dobro do peso e o corpo marcado por estrias, não fossem a mesma pessoa. Desde 1998 que os Açores são a região do país com a mais alta maternidade precoce. Os dados mais recentes disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística mostram que, em 2007, a taxa de fecundidade na adolescência (nados-vivos por cada mil mulheres com idades entre os 15 e os 19 anos) na região era de 32,8. Um valor que é aproximadamente o dobro do verificado no continente (16,2 por mil adolescentes) e da taxa nacional para esse ano (16,9 por mil adolescentes). Os números nos Açores não têm aumentado; mas mantêm-se estáveis, enquanto os de outras regiões - e, consequentemente, a taxa nacional - têm vindo a diminuir. Para perceber por que é que os Açores são uma realidade à parte no que toca à gravidez precoce, no ano passado o parlamento regional encarregou o governo açoriano de fazer uma análise profunda do problema. Os resultados desse estudo, em que participaram 176 grávidas e mães adolescentes de todas as ilhas do arquipélago, excepto o Corvo, vão ser divulgados ainda este mês e revelam que, se factores como a altura em que as raparigas iniciam a vida sexual, a média de idades das mães adolescentes e o número de companheiros são muitos semelhante aos registados no continente, há especificidades no caso açoriano que ajudam a explicar os valores tão altos. Não numa ilha em particular, mas em todas, já que o problema está espalhado pelo arquipélago de forma proporcional ao número de habitantes. A coordenadora do estudo, a psicóloga Maria Cristina Canavarro, explica que nos Açores "parece existir todo um contexto sociocultural que leva a que o papel materno e a conjugalidade e maternidade enquanto meios de valorização e afirmação femininas sejam prevalecentes nestas jovens". O abandono escolar atinge valores muito altos entre as grávidas adolescentes. Entre aquelas que participaram no estudo, e cuja média de idades era 17 anos, rondava os 80 por cento; e a maior parte (70 por cento) deste grupo de raparigas já não estava na escola quando engravidou. Enfrentando condições socioeconómicas adversas e com modelos familiares onde a mãe normalmente não é activa, as jovens aceitam o papel de mãe como a base da sua existência. Um terço das que participaram no estudo afirmou que se tratava de uma gravidez desejada ou até planeada. "No fundo, a maternidade, mesmo precoce, surge como um projecto de vida aceitável e mesmo desejável para muitas destas jovens, que, na sua maioria, revelam uma grande indefinição quanto a outros projectos que passem pela sua realização individual", constata a psicóloga. Oriundas, na sua esmagadora maioria (95,3 por cento das que responderam à questão), de famílias da classe baixa, onde a sexualidade é pouco discutida, estas jovens têm como principal fonte de informação acerca da sexualidade precisamente a escola a que voltam as costas assim que podem. A maior parte (64,2 por cento) das mães adolescentes não fazia nenhum tipo de contracepção antes da gravidez, o que leva Maria Cristina Canavarro a afirmar que, em muitos casos, "a gravidez resultou do facto de a jovem não fazer contracepção, recorrer a métodos de baixa fiabilidade ou a erros na utilização dos métodos contraceptivos".
Abortar ou não
Quando Maria de Lurdes levou a filha de 15 anos, que se queixava de dores de ouvidos, ao Hospital do Espírito Santo, em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nunca pensou sair de lá sozinha. Por mais que as enfermeiras lhe repetissem que Laura estava grávida de nove meses e, por isso, ficaria já internada para ter o bebé, ela respondia sempre que era impossível. Na escola, as amigas de Laura tinham reparado que ela andava sempre com um corta-vento preto por cima de roupas largas e que se descontrolava quando, sem querer, alguém lhe tocava na barriga. A própria mãe suspeitara que a filha pudesse estar grávida quando viu a forma como lhe custava andar para a paragem de autocarro onde a deixava todas as manhãs para ir para a escola. Mas nove meses? Nunca. "A enfermeira disse-me para eu pedir a alguém para ir buscar as coisinhas do bebé a casa, mas eu não tinha nada comprado", recorda Laura, hoje com 16 anos. Durante nove meses, escondeu a gravidez. Não contou a nenhuma amiga, nem ao pai da criança, e muito menos à única família que tinha: a mãe. "Eu tinha medo de todos me rejeitarem."Sem saber o que fazer, foi deixando o segredo crescer dentro de si. O aborto, explica, nunca foi uma opção. "Não era capaz de o fazer. Sou contra. "Como ela, mais de 90 por cento das grávidas e mães adolescentes que participaram no estudo não colocaram a hipótese de interromper a gravidez. A minoria que considerou essa opção não a pôs em prática principalmente por motivos religiosos e por valores pessoais (31 por cento), mas também pela oposição da família (27,5 por cento) ou porque já havia passado o tempo legal para a interrupção voluntária da gravidez (14 por cento). Quarto remodelado
Os Açores foram a região do país que, em ambos os referendos realizados sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez, votou pelo "não" de forma mais expressiva. Actualmente, apesar de a lei já ter entrado em vigor, os médicos dos dois principais hospitais do arquipélago, na ilha de São Miguel e na Terceira, alegam objecção de consciência para se recusar a fazer um aborto. Se Laura quisesse pôr termo à gravidez, teria de ir ao hospital da ilha do Faial, a única opção dentro do arquipélago, ou a Lisboa, acompanhada pela família, por ser menor. Isso foi o que Carolina acabou por fazer. Mas antes tentou pôr fim à gravidez por ela mesma. "Tomei tudo o que se dissesse que era proibido a grávidas. Só aspirinas foram umas 20 de uma vez." Quando isso não resultou, repetiu as bebedeiras de cerveja preta que lhe diziam que serviam para abortar. Foi só quando uma amiga que trabalhava no hospital lhe arranjou uns comprimidos que conseguiu perder o filho. Um mês depois, quando foi ao médico, percebeu que continuava grávida. O que antes eram gémeos era agora apenas um bebé. Com as palmas das mãos coladas e à altura da cara, a mãe de Carolina agradece: "Parece que foi Nosso Senhor! Um já dá tanto trabalho, imagine dois." Juntas foram ainda a uma clínica em Lisboa, mas já era tarde de mais para abortar. Carolina estava grávida de 13 semanas e não tinha dinheiro para ir a Espanha ou recorrer ao aborto clandestino. Agora, a poucos dias do parto, Carolina mostra como o seu quarto foi totalmente remodelado. As paredes foram pintadas de cor-de-rosa com pintas brancas e o armário está cheio de roupa em miniatura. Vestidos. No canto foi montado um berço. De seu ficou praticamente só a cama. O pai do filho está a cumprir o serviço militar e aparece menos vezes do que aquelas que ela gostaria. O 7.º ano ficou por acabar. Mas, para Carolina, a gravidez não representa o fim da vida que gostaria de ter. É antes uma pausa. Quando acabar, as amigas que foram deixando de lhe ligar vão voltar a convidá-la para sair à noite. Vai poder voltar a dançar, como tanto gosta. Vai fazer o 9.º ano, tirar um curso profissional de hotelaria e cumprir um sonho da mãe que ficou por realizar: ir para a tropa. "As jovens que engravidam apresentam uma percepção positiva acerca do impacto que a gravidez pode ter em diferentes áreas da sua vida." A coordenadora do estudo explica que a maioria acha que o relacionamento com os amigos, o tempo disponível para si próprias, a situação financeira e a relação com a família não serão afectadas pelo facto de serem mães. "E existem áreas que as jovens acreditam que serão muito beneficiadas com a gravidez como, por exemplo, a adopção de hábitos de vida saudáveis e a relação com o companheiro." O único aspecto da gravidez precoce que consideraram negativo foi o das mudanças no corpo provocadas pela gravidez. Daí que Maria Cristina Canavarro conclua que existe "uma vivência idealizada da vida conjugal e da maternidade". Nessa fantasia, os estudos são adiados apenas temporariamente: "Cerca de metade das grávidas e mães adolescentes manifestam vontade de voltar a estudar depois do bebé crescer, mas essa vontade raramente é cumprida", afirma a psicóloga. No caso de Laura, uma excepção a esta regra, o apoio da mãe foi o que fez toda a diferença. Quando engravidou, estava a tirar um curso profissional de Acção Educativa que lhe daria a equivalência ao 9.º ano. Com 15 anos e um filho para criar, achou que tinha o dever de desistir da escola e começar a procurar emprego. Quando não conseguiu, a mãe incentivou-a a voltar a estudar. Foi ela quem ficou com o bebé em casa, enquanto a filha passava o dia na escola. Laura acabou o curso onde aprendia a tomar conta de crianças e idosos, com 20 valores no estágio. A cara dela ilumina-se por trás da cortina de cabelo escuro onde normalmente se esconde. É das poucas alturas em que sorri, quando fala da escola e do filho, que este mês faz dois anos. O pai do filho, se antes era apenas um amigo, hoje é menos do que isso. Unidos apenas pelo devaneio de um dia, cada um seguiu a sua vida sem nunca sonhar que o outro pudesse participar nela. A mãe de Laura levou-a a tribunal e ele está proibido de ver o filho até começar a pagar a pensão a que é obrigado. Agora a tirar um outro curso profissional para ter equivalência ao 12.º ano, Laura sonha com a possibilidade de entrar na Universidade dos Açores, no pólo da ilha Terceira, que fica quase do outro lado da rua onde mora, no Bairro da Terra Chã, para tirar Educação de Infância. Diana interrompeu os estudos quando tinha 13 anos. Foi um castigo da mãe pelos anos que já tinha chumbado. As duas gravidezes não lhe deixaram muito tempo livre para a escola e ela, quando pensa no futuro, deixa-a de fora. Está à espera da casa que a Câmara Municipal da Praia da Vitória lhe vai arranjar. Nessa altura, talvez já possa trazer a filha mais velha novamente para junto de si. Depois de se ter casado em Junho com o pai de Samuel, o segundo filho, é só a casa que fica a faltar. (Carolina, Diana e Laura são nomes fictícios).
(Ana Brasil In Público)
Etiquetas: cursos, reportagem
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